quinta-feira, novembro 30, 2006

Em Cantelães, lembrando Pearl.

ENTRE COLEGAS

JANIS JOPLIN


Meu caro Dr. Machado Vaz,


A sua carta despertou-me sentimentos contraditórios, o passado invade o presente nesta profissão e – espero eu! – ajuda a preparar um futuro melhor para os nossos clientes. Mas certos passados, dolorosos, enterrei-os por baixo da carpete do meu gabinete. (Nem sequer corro riscos desnecessários, é a mesma há trinta anos e proíbo a empregada de a afastar quando ataca o pó, as caixas de Pandora têm a forma que a imaginação lhes empresta, não é verdade?). Perdoará a verborreia e os desvios, escrevo à noite, a lareira adormece e o nível do whisky na garrafa torna duvidosa a empresa de partir à aventura pelo tapete para a sacudir e reavivar, a casa vibra, de tão silenciosa. Grato pelo amável convite para visitarmos Portugal, o plural já não existe, minha mulher morreu no Verão – em Setembro, para ser mais exacto -, vitimada por uma daquelas doenças (preguiçosas, de tão confiantes) que os jornais teimam em apelidar de prolongadas para não assustar os leitores casuais; deixando aos outros, gulosos de notas obituárias, o prazer de resmungar enquanto se rebolam em saúdes de ferro, “cancro, foi o que foi”! A morte assim, pressentida, anunciada, vivida longamente, deixa um sabor agridoce. Uma tristeza suave, composta, as lágrimas ficaram para trás, o alívio ganha quase todas as discussões com a culpa, os olhos fecham-se à palidez e a cemitérios, são benévolos para recordações, de corpo e alma, “antes de…”
Tudo foi diferente com Janis. Um dia o telefone tocou e ali estava uma hora vaga nessa mesma tarde, acabei por aproveitar e ver um caso “urgentíssimo” enviado por um colega maçador, seguramente conhece o género. O homem fazia justiça ao meu mandante, odeio estes executivos que pedem para os mantermos na corrida, aterrorizados por jovens impiedosos que lhes cobiçam os lugares, em boa forma física, íntimos da última geração de computadores. Já os havia naquele tempo, hippies convertidos a uma certa forma do principio da realidade, yuppies ainda não baptizados, todos certos de terem Deus a seu lado, como cantava – ou gemia? – Bob Dylan. A última frase, a julgar pelo tom da sua carta, deve parecer-lhe uma heresia, mas confesso que os meus quarenta e dois anos me impediram a conversão para além dos Beatles e Simon e Garfunkel, pese embora os esforços bem intencionados de meus filhos, sempre prontos a exaltar os méritos de grupos com nomes tão prometedores como Grateful Dead e Mothers of Invention.
Pode imaginar a curiosidade com que acedi a receber Janis pela primeira vez, que se esconderia por trás daqueles uivos lancinantes? Caro colega, a resposta seria evidente após uma ou duas consultas para qualquer interno pouco dotado - ela sofria de medo em estado terminal. Cuspia impropérios com desespero, não me lembro de a ver utilizar uma cadeira, Janis agonizava pela sala até parar frente ao espelho e dizer baixinho que os bastardos tinham tido sempre razão. “Eles” – como também lhes chamava – podiam ser os colegas de escola em Port Arthur, da universidade em Austin ou de cama na noite anterior, o traço comum era a rejeição, imaginária ou real. É mentira dizer-se que não existem crianças feias, elas encarregam-se de o lembrar umas às outras. Janis não procurou os rapazes durante a infância, na adolescência fugiu das raparigas, dos espelhos, das festas em que via outras dançar. Vestidos cobiçados e de repente baços no corpo sem graça, alcunhas cruéis que se mantinham, apesar do seu riso estalar antes de todos os outros, como se pode pedir mais tragicamente desculpa a chefes de claque e rainhas de bailes por não ser como elas? Os rapazes eram mais fáceis, primeiro joelhos esfolados e palavrões, depois o sexo quando devia ter descoberto as mãos dadas. Janis despia-se para melhor tapar o medo, debochava o riso para evitar as lágrimas, quando a dor se tornava insuportável fazia saltar a rolha de garrafas sem rótulo, a anestesia não obriga a hesitar entre marcas. Quanto à Universidade, bastará dizer-lhe que foi nomeada para o prémio de homem mais feio do ano, mas nunca chegou a saber se tinha ganho, já estava a caminho de S. Francisco.
Não o maçarei com a trajectória profissional, o êxito em Monterey e Woodstock fala por si, a subida meteórica era inevitável, ela cantava-lhes as angústias e fingia desesperadamente ser feliz investindo contra regras e tabus. Sexo, drogas e rock’n’roll, a canção podia ter sido composta para ela. Homens, álcool, heroína, sempre a fuga ao espelho e a costas voltadas, o sucesso fê-la desistir para sempre de acreditar nas pessoas, repetia constantemente que era a “outra”, a do palco, que amavam, não a ela, como a conhecia. Porque cheguei a conhecê-la bem, sabe? A pouco e pouco foi-se abrindo, como uma flor que temesse ser arrancada. De vez em quando experimentava-me para ter a certeza que estava ali e entendia, faltou a sessões sem conta, desafiou-me sexualmente, riu da minha apregoada competência, mas – que faço eu? – o colega conhece tudo isto por experiência própria - batem e fogem para terem a certeza que não os abandonamos, em Portugal como aqui. Poderia dizer-se que a ajudei a sobreviver, com poucas esperanças de poder fazer algo mais. Janis não perdoava o passado e o presente só fazia crescer uma imagem que detestava. Em períodos mais confusos dizia “a outra, porca e suja”, é fascinante como os juízes mais severos se acoitam dentro de nós e sobrevivem a todos os excessos, cada vez estou mais convencido que a verdadeira liberdade é tranquila; ritualizada; solene.
E depois surgiu Seth Morgan na sua vida e ela aplicou-lhe o tratamento completo à base de obscenidades, provocações, tudo o que possa imaginar. Ele não se deixou enganar - era um tipo calmo, olhos azuis, quase cândidos, chamava-a carinhosamente pelo apelido, “Joplin, por que me castigas?” E ela ria como eu nunca ouvira, até uma tarde especial em que me fitou com os olhos rasos de lágrimas e murmurou baixinho – “e se ele gostasse mesmo de mim?” Durante uns tempos o paraíso morou ao virar da esquina, deixou as drogas e telefonava-me do estúdio a pedir desculpa por faltar, o álbum estava quase pronto e era diferente - melhor, mais doce; para ele. Planos de casamento, filhos, um rancho longe de tudo, a música por prazer e não para exorcizar fantasmas. Como sabe, a causa de morte foi uma overdose de heroína, supostamente fatal por o seu organismo se ter tornado mais sensível ao produto após meses de abstinência. Digo-lhe o que nunca disse a ninguém – não acredito. Uma semana antes tive-a no meu consultório em pânico, era feliz e não suportava a ideia de perder esse comboio, tinha sonhos horríveis em que Seth a deixava, pediu-me a certeza que os demónios não a voltariam a atormentar, repetia incessantemente “vou ser boa e tudo vai correr bem”. Nada justificava o regresso à heroína naquela altura, quanto a mim Janis matou-se por medo de ver desbotar as tintas do quadro em que vivia. Tinha espreitado pela porta entreaberta, não suportaria vê-la fechar-se de novo, morreu para não correr o risco de definhar, Deus me perdoe, talvez tenha tido razão, os fantasmas pareciam-me vencidos mas não convencidos.
No enterro, Seth disse uma frase estranha, “pecámos por ambição”. E partiu, nunca mais o vi, tenho a certeza que não esqueceu. Às vezes penso-a como um patinho feio que, como Ícaro, partiu rumo ao sol e não quis esperar pela degradação das asas, queda, vertigem, o regresso a este mundo. Janis preferiu morrer fitando o paraíso depois de o ter vivido, na esperança de o sonhar para sempre. Ah, Dr. Machado Vaz, sou um velho, receio que tudo em mim já tenha a morte como ponto de referência, até o faro clínico. Não sei. Perguntou-me como ela era e eu respondo-lhe que continuo a não ouvir os seus discos – a “outra” -, mas tenho saudades de sorrisos fugidios ao cerrar da porta e ainda me pergunto se não poderia ter feito mais qualquer coisa por ela. Dúvidas que o colega conhece bem, a psiquiatria é um ofício de aprendizes de feiticeiro, logo, de pesadelos frequentes. Mas, verdade seja dita, nunca me aconteceu invejar os bancários ao longo de todos estes anos.

Cordialmente,

Sam Watson

quarta-feira, novembro 29, 2006

Jogos de sombras.

«Decisão da Comissão é inaceitável», diz PM turco

2006/11/29 14:49

Erdogan diz que negociações euro-turcas podem ser prejudicadas

O primeiro-ministro da Turquia, Recep Tayyp Erdogan, considerou hoje inaceitável a decisão da Comissão Europeia de suspender parcialmente as negociações de adesão da Turquia à União Europeia (UE), noticiou a televisão turca NTV, escreve a Lusa.
«A decisão da Comissão é inaceitável», disse Erdogan à imprensa turca em Riga, à margem da Cimeira da NATO. O primeiro-ministro turco, que tinha acabado de se reunir com o seu homólogo italiano, Romano Prodi, acrescentou que não esperava esta decisão e que ela pode prejudicar as negociações euro-turcas, iniciadas em Outubro de 2005.
Um assessor do primeiro-ministro turco, Egemen Bagis, disse por seu lado à NTV que os líderes turcos «não vão deixar que os seus direitos sejam atropelados» e que «vão tentar evitar esta suspensão parcial».
A Comissão Europeia decidiu hoje propor aos 25 uma suspensão parcial das negociações de adesão da Turquia à UE, em resposta à recusa das autoridades turcas de abrir os seus portos e aeroportos a Chipre, um dos Estados membros da União.


Mundo estranho... Um Cardeal é contra o acolhimento da Turquia pela União Europeia, mas, uma vez Papa, declara-se a favor; um Primeiro-Ministro que pusera a hipótese de não o receber, desagua no aeroporto e recebe, surpreendido (?), a notícia da mudança de atitude, justificada como sendo agora da Santa-Sé e não do antigo Cardeal; parte para uma reunião com o apoio no bolso e uma razão de interesse nacional para justificar perante o seu povo uma atitude maioritariamente não desejada; e leva tampa da Europa de "matriz cristã". Jogos de sombras...

terça-feira, novembro 28, 2006

72%????? Só vendo...:(

'Sim' esmaga nos jovens, 'não' recupera 5 pontos Martim Silva

O referendo sobre o aborto do início do próximo ano pode tornar-se o primeiro em Portugal a conseguir levar às urnas mais de metade dos cidadãos eleitores inscritos nos cadernos de recenseamento. É isso mesmo que mostra a sondagem da Marktest para o Diário de Notícias e TSF: 72,7% por cento dos inquiridos, praticamente três em cada quatro, mostram vontade de ir votar no referendo, que Cavaco Silva terá de marcar para uma data entre o início de Janeiro e o final de Maio de 2007.Depois de duas consultas nacionais (ambas em 1998) em que foram mais os eleitores que não votaram do que os que se deslocaram às urnas, o panorama parece agora bem diferente. De acordo com a sondagem, 21,2% responderam não ter intenção de ir votar e apenas 6,1% disseram não saber se vão ou não votar. A diferença entre uma abstenção acima ou abaixo dos 50% é grande, na medida em que a lei considera que os referendos só são vinculativos se contarem com a participação de mais de metade dos eleitores.O Presidente da República tem agora mais 12 dias, até 10 de Dezembro, para decidir da convocação da consulta (durante a campanha presidencial, Cavaco deixou claro que viabilizaria qualquer proposta de referendo aprovada pelo Parlamento que chegasse a Belém).Na sondagem da Marktest deste mês, outro dado assume particular significado: é que se a esmagadora maioria dos portugueses quer ir votar, uma larga maioria afirma por seu lado que vai votar pelo "sim" à despenalização do aborto até às dez semanas. A diferença entre os apoiantes do "sim" e do "não" é nesta altura de dois para um (61%-30%). Uma larga vantagem, que, ainda assim, foi reduzida em cinco pontos em relação ao resultado que outra sondagem mostrava há um mês - no referendo de 1998 sobre o aborto, o "não" saiu vitorioso com 50,07% dos votos. Os jovens, ou seja, os eleitores entre os 18 e os 34 anos, assumem nesta sondagem um papel particularmente importante: são eles que mais dizem que vão votar (85,7%) e são eles que mais dizem que vão votar "sim" no referendo (73,7%). Por oposição aos mais velhos (mais de 55 anos), que são quem menos vontade tem de ir votar e quem mais opta pelo "não" no referendo.

segunda-feira, novembro 27, 2006

O Klatuu lembrou muito acertadamente.

de profundis amamus

Ontem
às onze
fumaste
um cigarro
encontrei-te
sentado
ficámos para perder
todos os teus eléctricos
os meus
estavam perdidos
por natureza própria
Andámos
dez quilómetros
a pé
ninguém nos viu passar
excepto
claro
os porteiros
é da natureza das coisas
ser-se visto
pelos porteiros
Olha
como só tu sabes olhar
a rua os costumes
O Público
o vinco das tuas calças
está cheio de frio
e há quatro mil pessoas interessadas
nisso
Não faz mal abracem-me
os teus olhos
de extremo a extremo azuis
vai ser assim durante muito tempo
decorrerão muitos séculos antes de nós
mas não te importes
não te importes
muito
nós só temos a ver
com o presente
perfeito
corsários de olhos de gato intransponível
maravilhados maravilhosos únicos
nem pretérito nem futuro tem
o estranho verbo nosso

Mário Cesariny

domingo, novembro 26, 2006

O toque pessoal.

Já perdi a conta aos Congressos em que participei. E não foi ontem!, baralhei as contas para aí há vinte anos:). Na esmagadora maioria dos casos fui tratado como um príncipe. E no fim dos trabalhos, lá recebo uma lembrança ternurenta, relacionada com tema, local ou época. Este fim-de-semana fui ao Hospital de Leiria, com árvores caídas na auto-estrada e tudo. E quando acabei de falar, tinha uma escultura de refinado bom gosto à minha espera. Mas não só. O meu colega Bilhota Xavier reservara-me uma surpresa - frequentador do Murcon e consciente das minhas (nossas!) paixões, comprara o último disco dos Beatles para si..., e para mim:). Fiquei desvanecido. Porque uma coisa é a gentileza; outra o carinho.

sábado, novembro 25, 2006

Culturalmente "normal"...

Violência: namorar e apanhar

2006/11/25 14:10 Cláudia Lima da Costa

Número de vítimas até aos 24 anos foi o que mais cresceu, em 2006. O aumento é de 59 por cento. Agressões dentro do namoro ainda não são consideradas violência doméstica. Para muitos adolescentes bater «é normal»
O namoro está habitualmente associado a uma fase romântica da vida. No entanto, em Portugal, está também ligado, em muitos casos, à violência. O aumento nos casos e denúncias de violência doméstica, registados em 2006, teve maior expressão nas vítimas com idades até aos 24 anos. Este sábado é o Dia Internacional para Eliminação da Violência contra as Mulheres.
Os dados da PSP e da GNR dos primeiros seis meses deste ano, em comparação com o primeiro semestre de 2005, revelam um aumento de 59 por cento de vítimas com idades até aos 24 anos. De 917 vítimas passamos para 1459. Apesar de não ser o escalão onde existem mais casos, é aquele que regista o maior aumento.
A maior parte das ocorrências de violência doméstica ocorre já na idade adulta, nomeadamente, a partir dos 25 anos. Neste escalão foram registadas 8,177 vítimas, no primeiro semestre deste ano, contra 6,119, no mesmo período do ano passado. Um aumento de 34 por cento, segundo os dados das forças de segurança.
«Há um aumento de casos. No entanto esperamos que com a entrada da nova lei esse aumento ainda seja maior», afirmou ao PortugalDiário Helena Sampaio, da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima. O crime entre namorados ainda não está tipificado como violência doméstica, pelo que, ainda não é crime público (pode ser denunciado por qualquer pessoa). «As agressões são registadas apenas quando há queixa da vítima e são tipificadas como crimes ¿normais¿», explicou.
O surgimento de mais relatos de violência entre jovens motivou já que a Estrutura de Missão contra a Violência Doméstica (EMCVD) lançasse um folheto para prevenir os jovens de que «a violência nas relações de intimidade não ocorre só entre pessoas casadas, não ocorre só entre parceiros que viveram ou vivem juntos».
«Alguns jovens acham que é normal haver violência, que bater é normal. O nosso dever é passar a mensagem de que isso não é a realidade», explicou fonte da EMCVD. O folheto de prevenção alerta ainda que «o ciúme excessivo não é um sinal de amor, mas de possessividade e controlo».

sexta-feira, novembro 24, 2006

E o Carteiro de Pablo Neruda, e, e, e...:(.

Óbito: actor francês Philippe Noiret

O actor francês Philippe Noiret faleceu ontem vítima de cancro, informou o seu agente.

Nascido em Lille em 1930, o actor era um dos mais conhecidos do cinema francês, em especial devido ao filme ‘Cinema Paraíso’.

quinta-feira, novembro 23, 2006

A vertigem sensorial:).

"Mas eu tinha-me convencido que a nossa inteligência apenas filtra até nós um magro resíduo dos factos: interessava-me cada vez mais pelo mundo obscuro da sensação, noite negra onde fulguram e revoluteiam sóis que cegam".

Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano.

quarta-feira, novembro 22, 2006

À boleia de Alquimista e Fora-de-lei.

Gosto muito da palavra "bonomia":). E é realmente o que procuro na tertúlia do Porto Canal - reduzir, também pelo riso, o futebol às suas verdadeiras proporções, não suporto tanto catedrático a debitar "Filosofia e Física Quântica" sobre o mundo da bola. Quando me pediram para colaborar, salientei que não poderia comparecer todas as Segundas-Feiras. Na próxima, por exemplo, estarei numa reunião promovida pelos alunos do ICBAS. Outro benfiquista aparecerá:). A ausência de "cachet" vem no seguimento do que já acontecera na NTV - ajudarei todos os projectos que apostem na visibilidade do meu Porto, considero inacreditável que esta Área Metropolitana se confesse incapaz de fazer vingar um projecto televisivo.
Quanto aos meus netos..., já são portistas, os cruéis traidores:(.

terça-feira, novembro 21, 2006

O balbuciar de Wish You Were Here.

O DIAMANTE LOUCO


ROGER WATERS (I)


Não deixa de ter piada: fama e proveito de liderar a banda de rock mais preguiçosa do mundo e aqui estou eu, metido no estúdio ao fim-de-semana, os técnicos de som iam tendo um enfarte quando lhes telefonei. Claro que estou atrasado, mas isso não passa de justificação oficial, angustia-me pensar o disco pronto. Ando a dar com toda a gente em doida com as minhas incertezas - uma palavra aqui, um baixo diferente acolá, estico ou encolho a segunda parte de Shine On You Crazy Diamond? Tive um sonho horrível: Syd aparecia-me com o disco debaixo do braço, plantava-se à minha frente em silêncio e nem um pedacinho de papel ou vinil ficava para amostra; tudo pelo ar, confetis de Carnaval. Uma versão enorme dos pisa-papéis da minha infância, o velho trouxera-os da Suiça, sacudia-se e recomeçava a nevar. Os olhos frios, um desdém acusador, o meu psiquiatra falou de projecção da culpa. Para o inferno, ele e o busto de Freud por cima da lareira. Já não suporto a teoria brilhante de críticos azedos, eu e David não somos nenhuns meninos de coro, mas acusar-nos de empurrar Syd para a loucura não lembra ao Diabo. Es-qui-zo-fre-ni-a. Ali, no papel do internamento, ninguém a sabe explicar e ponto final. Os palavrões são o que menos importa, há meses e meses uma sombra o invadia, olhares perdidos, exigências estranhas, aferrolhado no camarim antes do palco, desaparecido logo a seguir. E os risos, solitários, a despropósito – “não é nada”, dizia -, mas olhava-nos como se percebesse coisas escondidas atrás de nós ou disfarçadas por frases inocentes; fazia medo. Cada vez mais longe. Vi-o partir com pena e alívio, sempre o visitei pouco, a loucura verdadeira – sem ajudas químicas e bilhete e regresso – assusta-me. Como a morte, nunca se sabe quem vai a seguir. E no entanto, depois do sucesso de Dark Side, fui assaltado por uma nostalgia enorme - ele desejara o êxito como nós, fomos lentos. Mas custou muito trabalho a encontrar o equilíbrio. Ou talvez não, se calhar só naquela altura tínhamos crescido o suficiente para nos darmos ao luxo de vender milhares de discos sem paranóias de ter traído. Nós; ele não. Teria desatado aos berros, feito um discurso acerca de música comercial e efeitos habilidosos, até acabar no meio da sala a perguntar se nos esquecêramos do rock. Foi a ele que traímos, afinal. À sua música, bem mais desesperada do que a minha, cheia de roupagens e fantasmas. Syd compunha à base de dor e guitarras roufenhas, o coração da capa do disco poderia ser o dele, mas com uma montanha de calmantes em cima. Tenho saudades. Shine On surgiu naturalmente, é uma canção mentirosa, ele não voltará a brilhar. Mas durante semanas a primeira frase perseguiu-me, quase escrevi “recorda quando éramos jovens”, tudo o resto são imagens enganadoras e vazias, só voltei a sentir a caneta firme quando escrevi as linhas finais, seria eu capaz de trocar o triunfo por uma brisa calma a seu lado? Era um perdigueiro magnífico, sempre à procura, nada lhe servia abaixo da verdade e do delírio. Não sei, e se continuar metido neste quarto de banho a escrever e a charrar também não vou descobrir. Chamar os outros não seria solução, é do que foram que sinto a falta, não do seu presente dourado. Quem me dera que estivéssemos todos juntos como antigamente, antes de Syd buscar refúgio dentro de si. Apetece-me escrever uma canção sobre o engano monstruoso que consiste em confundir contas bancárias e sabedoria, arrogância e fuga dos velhos medos, agitação e movimento. Uma melodia simples, a letra como um falso diálogo. Por trás de Syd e dos outros é comigo que falo, às voltas num aquário, as respostas fazem-me negaças. Vasculho música e dinheiro e tenho saudades de um riso franco de mulher, cabelos ao vento, dedo em riste, acusando-me de autopiedade… Jesus, que solidão! Existirá resposta? Fora de mim?

segunda-feira, novembro 20, 2006

Os malefícios da tecnologia? Não, as oportunidades que proporciona.

"Caso pode chegar à justiça

Jovem italiano encena morte para acabar com relação na Net
Um adolescente italiano, de 14 anos, simulou a própria morte para terminar uma relação que mantinha via Internet, noticiou a Ansa.

O jovem, residente em Vicebellignano, uma localidade com apenas 1300 habitantes, situada na província de Cremona, no norte de Itália, encarregou a irmã de enviar uma SMS para o telemóvel da ciber-parceira para a informar da suposta morte, causada por um alegado acidente de viação.
A irmã continuou a história, acrescentando que o irmão tinha sido submetido a várias cirurgias, entrado em coma e, por último, havia falecido.
A mentira arquitectada pelos irmãos para romper a relação transformou-se numa tragédia para a jovem enamorada, que «se desfez em lágrimas ao saber da morte do parceiro» , contou a mãe.A irmã do «falecido» pediu à jovem que não fosse ao funeral, mas que enviasse uma coroa de flores para ser depositada no túmulo.
Desconsolada, a jovem descobriu, no entanto, a mentira, depois da mãe ter telefonado para o registo civil e para um jornal local de Cremona para obter informações sobre o funeral.
A família da jovem considera agora denunciar os irmãos à polícia e entrar com um processo judicial."
Vide in http://sol.sapo.pt/PaginaInicial/Tecnologia/Interior.aspx?content_id=10099

sexta-feira, novembro 17, 2006

O Power-Point em 33 rotações.

Maria,
Estou a acabar a conferência para Santiago. Penosamente... A princípio não percebi porquê, facto não muito elogioso para a minha perspicácia! Velhos temas, slides novos, discurso remendado, de onde nasciam os solavancos? Do pano de fundo, é óbvio, o apóstolo coraria se nos visse por aquelas ruas. Eu inventava pretextos para me atardar na montra de uma livraria, só para te ver navegar à minha frente. Confesso que nunca percebi a obsessão apressada dos homens pela nudez. O seu tempo chega, quando as mulheres assim o decidem, concedeste-ma vezes sem conta. Mas antes..., antes havia esse andar ondulante, os jeans que te não davam um dedo de liberdade a partir da anca, o blusão curto que a sublinhava, o cabelo arrapazado de miúda gaiata, os tacões que ressoavam indolentes na pedra e exasperantes dentro de mim. Meia-volta, o sorriso, "assim me trocas pelos livros, Júlio? Quem me protegerá dos belos galegos?". Eu não, Maria, jamais acreditei em amores enjaulados; eu, não. Na Galiza, em Inglaterra ou no Inferno, sentir-me-ás o braço pelos ombros para mimar, nunca para reter. Naqueles tempos a decisão era tua, hoje ainda o é. Ainda... Porque estou cansado de te imaginar a sair de um avião, talvez seja melhor seguir em frente e recordar-nos pelas ruas de Santiago.

quinta-feira, novembro 16, 2006

O velho Rei Lagarto.

PARIS, FRANÇA


JIM MORRISON



Foi como se tivesse caído uma bomba no estúdio, um cogumelo atómico de silêncio. As palavras surgiram a custo, tangenciais, ninguém lhe pronunciou o nome, dizia-se simplesmente que “ele” não voltaria. Os outros três apareceram pouco tempo depois, amáveis mas silenciosos, a aura desaparecera, seria uma imagem demasiado fácil dizer que a porta dos fascínios se fechara para sempre. Calei a minha ausência de surpresa, gosto de passar despercebido, a posteriori qualquer besta se pode arrogar em Nostradamus, mas uma cena voltou-me à memória - Ray ao piano, quando lhe dissemos que L.A. Woman estava pronto. Um sorriso amargo e breve, o olhar (docemente de través) pousado em Jim, mãos distraídas por teclas que sussurraram um The End clandestino. Ao reparar em mim, parou de imediato e escondeu a verdade proclamando outra – “belo disco, não é? Como antigamente…” Não foi por acaso que o rei Lagarto nunca gravou a solo, os críticos tinham razão, algo se passava entre os quatro que impedia a fuga. Jim era a face visível e bela de um todo, para lhe sobreviverem os outros tiveram de se resignar ao cinzento do quotidiano. De repente transformavam-se em pessoas vulgares, sombras de sonhos, nós esperávamos e eles estavam já de regresso. Sem azedume ou espanto.
Não sei como souberam, talvez ele próprio o dissesse, mas duvido, conheciam-se demasiado bem para dependerem de grandes palavras. Eu tive a certeza durante as gravações. Um disco engana muito, os indícios mais importantes não se encontram nas canções de maior sucesso. Não moravam em L.A. Woman ou Riders on the Storm, mas no começo, quando pedia que o vissem mudar. Versos estranhos esses, “nunca estive tão falido que não pudesse deixar a cidade”. Jim não partira porque não quisera, obstinado como estava em encontrar a resposta nesta América a quem dedicou um mural sonoro pintado a garrafas de whisky.
Aceito o resultado da autópsia, já é de admirar que o coração tenha aguentado tantas tropelias, mais meia dúzia de anos e seria o fígado a comprar os bilhetes para a viagem. Mas não engulo essas tretas da procura da verdade e das musas até ao fim, Morrison tinha desistido e sabia-o. Porquê Paris? Sou suspeito, é uma resposta que guardo para quando reservar um quarto duplo e vir a minha garota sentada na cama, pernas chinesas e migalhas por tudo o que é lençol, assassinando os famosos croissants. Coisas de miúdos, meu pai – com a ajuda de mais alguns! – libertou a cidade e desconfio que alguma fez por lá, sempre me disse, ar solene e nostálgico, que os franceses eram péssimos soldados mas tinham razão - Paris só devia ser visitada em estado de graça amorosa.
De certo modo, penso que Jim raciocinou ao contrário - partiu para voltar apaixonado. A relação deles foi morrendo enquanto os rituais de palco a engoliam, os sumo-sacerdotes de qualquer religião têm vidas familiares difíceis. Magoaram-se muito, Paris diria se demasiado, não era uma segunda lua-de-mel, mas um balanço, talvez final. Dos Doors, levou ele poetas que rumorejavam sob versos americanos, Baudelaire, Rimbaud, os malditos. Pam…, não sei; muitas vezes a surpreendi desenhando horas a fio durante as gravações. Um dia perguntei-lhe de que se tratava e ela mostrou-me esboços de uma casa térrea e lançou-se na descrição entusiástica de relva, cães e miúdos. Devo ter ficado tão boquiaberto que a envergonhei, sentiu-se obrigada a murmurar um “não é para já, só depois…”.
Da próxima digressão, completei eu, de volta ao planeta Terra. Guardou os rabiscos e riu silenciosa, quase convulsa, dobrada sobre si própria, um murmúrio quase imperceptível – “só depois de ele entender”. Que o caminho não era aquele, mais vale um dia de vida nossa, mesmo nossa, do que anos a catalisar o êxtase dos outros. Deve ter compreendido, recusou a estrada depois de L.A. Woman. Jim foi a Paris à procura de dois miúdos perdidos nas praias da Califórnia onde se tinham encontrado antes da história do Rei Lagarto começar. E morreu porque tinha desaprendido a arte de chegar a ela face a face, em dueto, manhãs, tardes e noites sem groupies, ensaios, produtores; os outros três. As drogas e o álcool eram muletas para o medo de engordar, a falta de inspiração, o passado, ferozmente escondido. Aposto que subiu as doses para estar perto dela numa boa, sem paranóias, a felicidade na ponta da agulha. E penso isso porque a vi há tempos e ela me sorriu enquanto eu engolia em seco, atrapalhado. Meteu os sacos de compras no carro e arrancou. Semanas mais tarde recebi um postal com uma daquelas fotografias de Jim que faziam sonhar as adolescentes, o texto era breve – “Este é vosso e todo-poderoso, exibam-no para sempre. O outro ficou em Paris e era uma criança amedrontada, mas eu amava-o. Ele não conseguia acreditar”, Pam. Seis anos depois estava morta.

quarta-feira, novembro 15, 2006

O primeiro dominó em África.

África do Sul legaliza casamentos homossexuais
2006/11/14 16:11

É o primeiro país africano a legalizar união entre pessoas do mesmo sexo
O Parlamento sul-africano aprovou esta terça-feira uma lei que autoriza os casamentos homossexuais, tornando-se no primeiro país do continente africano a legalizar a união entre duas pessoas do mesmo sexo, noticia a agência France Press.
A lei foi aprovada com 230 votos, 41 contra e três abstenções, após um debate aceso e polémico sobre a legislação relativa à união civil.
A nova legislação, que autoriza a oficialização das uniões entre pessoas do mesmo sexo pelo casamento ou pela união civil, foi contestada pelas organizações religiosas, conservadores e tradicionalistas.
Apesar da contestação, o Governo sul-africano considera que a nova legislação faz parte do seu compromisso de combater toda a forma de discriminação contra os homossexuais em matéria de matrimónio. «Rompendo com o nosso passado, necessitamos de lutar e resistir a todas as formas de discriminação e preconceitos, incluindo a homofobia», afirmou a ministra do Interior sul-africana, Nosiviwe Mapisa-Nqakula, antes da votação da lei.
A adopção da nova lei já foi saudada pelas associações de defesa dos direitos dos homossexuais, como a Joint Working Group, uma coligação nacional formada por 17 grupos de lésbicas, homossexuais e bissexuais.
«A lei simboliza a rejeição das tentativas de classificar as lésbicas e homossexuais como cidadãos de segunda categoria», defendeu, em comunicado, Kikile Vilakazi, porta-voz da Joint Working Group. Para a coligação, a decisão de hoje «é uma demonstração de empenho dos parlamentares em garantir que todos os seres humanos são tratados com dignidade».
A alteração legislativa começou a ganhar forma depois de o Tribunal Constitucional do país ter considerado inconstitucional a anterior lei do casamento, baseada na «união entre um homem e uma mulher», por ser contrária ao preceito constitucional que garante os mesmos direitos para todos os cidadãos.

terça-feira, novembro 14, 2006

Aposto que o outro Nuno Grande está de acordo:).

"... Rui Rio mete todos os criadores - os bons e os maus, que também os há - no mesmo "saco" de subsídio-dependentes ingratos, e militantes desse odioso partido que é o "cultural". Num anacronismo incompreensível, a sua acção populista procura ressuscitar uma retórica neo-conservadora, insistindo em ver, como "desperdício", o que outros países, bem mais liberais do que Portugal, consideram ser absolutamente estratégico - o incentivo à criação artística contemporânea."

Nuno Grande, Arquitecto e Docente Universitário, Público.

segunda-feira, novembro 13, 2006

A propósito...

Esteticamente, gosto muito do poema. Se ele traduz uma "ideologia" - não é obrigatório... -, não a partilho. Posso ver um amigo afastar-se e não pronunciar palavra, mas cá dentro grito. Posso acolher outro depois de ausência por explicar, mas um dos meus pés fica-se pelo cais. Nunca aceitarei uma visão blasée e quase tangencial da amizade. Exijo muito, gosto de acreditar que ofereço outro tanto. Porque não me chega partilhar a sede da alegria - quero-a beber, mesmo amarga. E sendo amigos..., pela mesma taça! Porque na amizade é preciso bebê-la até ao fim.

domingo, novembro 12, 2006

Aplicável aos amores?

Os Amigos


Oa amigos amei
despido de ternura
fatigada;
uns iam, outros vinham;
a nenhum perguntava
porque partia;
porque ficava;
era pouco o que tinha,
pouco o que dava,
mas também só queria
partilhar
a sede de alegria -
por mais amarga.

Eugénio de Andrade.

sábado, novembro 11, 2006

Quinta-Feira à noite, cheio de sono.

Quinta-Feira à noite fui ao Clube Literário do Porto ouvir poesia. A dormir em pé... O que foi um erro, com o Carlos Magno a moderar. O maroto obrigou-me a intervir e eu disse uma caterva de asneiras, que felizmente esqueci. Excepto uma promessa suicidária: levar um livro da próxima vez e ler um poema. Há quase vinte anos que leio poesia na rádio e na televisão, há mais para os meus alunos. E no entanto nunca me senti a lê-la "em público". Os alunos são família, as câmaras inocentes, nunca imagino gente de carne e osso para lá delas. Acontece que eu gosto muito do Carlos. Dele e do jovem conviva dos almoços com o meu Pai, de onde o meu velho regressava consolado, "o rapaz é inteligente e culto". Por isso o Magno é sagrado para mim, "um amigo de infância que só conheci na idade adulta". E da próxima vez levo poemas do Eugénio ou da Amalia Bautista e assassino-os em voz alta. De graça! Para alívio do Dr. Rui Rio...

sexta-feira, novembro 10, 2006

Não só. Mas também!

Especialistas dizem que os pais renunciam à imposição da autoridade

Especialistas em educação defenderam esta sexta-feira que o aumento da violência escolar se deve em parte a uma crise de autoridade familiar, onde os pais renunciam a impor disciplina aos filhos, remetendo-a para os professores.
Vários especialistas internacionais estão reunidos na cidade espanhola de Valência a analisar até sábado o assunto «Família e Escola: um espaço de convivência».
Os participantes no encontro, dedicado a analisar a importância da família como agente educativo, consideram que é necessário evitar que todo o peso da autoridade sobre os menores recaia nas escolas, o que obriga a «um esforço conjunto da sociedade», refere a agência Lusa.
«As crianças não encontram em casa a figura de autoridade», um elemento fundamental para o seu crescimento, disse na conferência inaugural do congresso o filósofo Fernando Savater.
«As famílias não são o que eram antes, um núcleo muito amplo e hoje o único que muitas crianças contactam é a televisão, que está sempre em casa», sublinhou.
Para Savater os pais continuam a «não querer assumir qualquer autoridade», preferindo que o pouco tempo que passam com os filhos «seja alegre» e sem conflitos e empurrando o papel de disciplinar quase exclusivamente para os professores.
No entanto e quando os professores tentam ter esse papel disciplinador, «são os próprios pais e mães que não exerceram essa autoridade sobre os filhos que intentam exercê-la sobre os professores, confrontando-os».
«O abandono da sua responsabilidade retira aos pais a possibilidade de protestar e exigir depois. Quem não começa por tentar defender a harmonia no seu ambiente, não tem razão para depois se ir queixar», sublinha.
Os professores, afirma, não podem ser deixados sós, e a liberdade «exige um componente de disciplina» que obriga a que os docentes não estejam desamparados e sem apoio, nomeadamente das famílias e da sociedade.
«A boa educação é cara, mas a má educação é muito mais cara», afirma, recomendando aos pais que transmitam aos seus filhos a importância da escola e a importância que é receber uma educação, «uma oportunidade e um privilégio».
Savater explicou que é essencial perceber que as crianças hoje não são mais violentas ou mais indisciplinadas que antes, mas que hoje «têm menos respeito pela autoridade dos mais velhos».
"Deixaram de ver os adultos como fontes de experiência e de ensinamento para os passarem a ver como uma fonte de incómodo. Isso leva-os à rebeldia", afirmou.
Daí que mais do que reformas aos códigos legislativos ou às normas em vigor, é essencial envolver toda a sociedade, admitindo que «mais vale dar uma palmada, no momento certo» do que permitir as situações que depois se criam.
Como alternativa à palmada, oferece outras, como suprimir privilégios, alargar os deveres ou trabalhos de casa.

quinta-feira, novembro 09, 2006

Ainda meto cá o Domingos, Sábados e outros Dias todo:).

O PRESENTE

ROGER WATERS (II)


Roger,

Cá recebi o exemplar de Wish You Were Here e o recado que tiveste a amabilidade de transmitir ao porteiro. Conheço-te demasiado bem! “Não incomode a menina”, em ti, significa apenas que não tencionavas subir, o disco fará o trabalho sujo de um modo asséptico, nada de gritos ou silêncios intermináveis. Parabéns, foste maquiavélico. Posso tocá-lo, projectar o vídeo das últimas férias, parar a imagem quando brindas a câmara com um olhar de esguelha, imaginar-te pela sala experimentando rimas coxas. Essa tua arte de transformar remoques em ponto de partida para canções… David disse-me um dia que tinha a estranha impressão de viver comigo em palco, de tal forma és incapaz de compor à revelia do teu umbigo e das tuas obsessões. E eu fui – sou! – uma delas, não é verdade? Às vezes preferia ter sido algo de prosaico, namorada por exemplo; mas contigo ninguém vive como as pessoas da rua ao lado. Shine On é bonito, sempre amaste Syd bem mais do que admites, às vezes cheguei a pensar que te envergonhavas por não o ter acompanhado na sua viagem para a face escura da Lua. Algumas das letras, das músicas e dos arranjos pareciam flirts descarados com a loucura, era assim que o visitavas sem ir ao hospital. Compreendo-te - era horrível ver aqueles olhos risonhos e travessos vazios de qualquer expressão, buracos negros de noites que não respeitam manhãs. De uma saudade passaste para outra, não foi? As cartas têm vantagens, se te dissesse isto cara a cara acabava a frase a dialogar com as tuas costas, porta batida com estrondo, consegues abrir-te com milhões, nunca a dois. Nas montras das lojas, em quartos de jovens que te decifram de acordo com os seus próprios fantasmas, nesses concertos raros e curtos, os homens das luzes proibidos de iluminar as primeiras filas porque não te podes dar ao luxo de distinguir os contornos de uma só face. Assim, protegido pelo barulho à tua volta, por essa montanha de gente que tratas amavelmente para lhes pedir desculpa por não os notares, assim, Roger, constróis um diálogo satânico a uma só voz, sem me dares hipótese de resposta. A não ser que me pendure na tua campainha e peça para subir. Pobre de quem não tenha talento, fica reduzido às formas de comunicação das pessoas normais, tu compões-me um disco e eu escrevo-te uma carta em papel de bloco… Não precisavas de mo oferecer, eu tê-lo-ia comprado e percebido, Wish You Were Here foi escrito a pensar em mim e não em Syd ou nos outros, é demasiado agressivo e doloroso, cheio de sinais que apenas eu posso entender - cheio de nós. Também posso fazer batota, sabes?, basta não enviar a carta e a liberdade é total, o amor-próprio fica protegido. O amor próprio e o outro – solitário, sem adjectivo; teu. Não o confessaria se aqui estivesses, duvido que te permita lê-lo, mas acertaste em cheio, somos duas almas perdidas nadando em círculos, ano após ano, acabo sempre ao espelho do nosso quarto, remirando o medo. Como tremia, quando exigi que saísses! Uma esperançazinha de te ver recusar, depois viriam gritos e lágrimas, silêncios fatigados, o desejo renascendo dos escombros, não existem vencedores ou vencidos quando o primeiro gesto é órfão e os dedos se encontram a meio caminho. Sorrir no escuro da tua respiração tranquila e imaginar a manhã seguinte, sempre resmungona, a inveja, meiga e lamurienta, “levei hoooras a adormecer”. Nunca foste assim, meu querido, desmaiavas como um bebé, mas – justiça te seja feita! –ainda foste mais rápido a sair, não me deste sequer tempo para me arrepender da expressão de fúria. Que deve ter sido assustadora, de acordo, a jarra ficou em mil pedaços e a porta ainda tem marcas, mesmo depois de pintada. E no entanto, juraria que esperei uma fracção de segundo, o estritamente necessário para te saber do outro lado, a salvo. Dir-se-ia a história da minha relação contigo: bater o mais possível sem te destruir, exigir a tua presença e certificar-me de que mantinha uma certa distância, para sobreviver sem me diluir em ti. A letra é muito bonita, Roger, e a resposta um “não” melancólico a todos os sarcasmos. Vi-te partir há meses e não consigo distinguir o Céu do Inferno ou um sorriso de um véu, mas – infelizmente! – ninguém conseguiu fazer-me trocar heróis por fantasmas ou as nossas longas guerras por qualquer forma de poder numa dessa jaulas em que os ingleses são felizes. “Sitting in an english garden…” dizia John. (Aqui entre nós não acho que tenha ido para melhor com aquela japonesa metida a intelectual.) Estou na mesma e sozinha. Pronto, já me decidi, agora tenho a certeza que não lerás a carta, nunca saberei qual de nós era mais orgulhoso. Amo-te. Pensei que tudo desaparecesse com o tempo, os copos, os amigos, até chegar a altura de novas paixões - boas, adequadas, com futuro. Tive medo de ser engolida, trocada por uma groupie qualquer, eu sei lá!, tive medo das mil e uma maneiras de ficar sem ti, a sós com a tua recordação, sem amanhãs. Queria paz, uma vida normal, filhos, alguém que os meus velhos não olhassem de lado quando os visitasse em Folkestone. Não fui a tempo, nunca teria ido a tempo, estes meses frente ao espelho acabaram por me fazer acreditar em baboseiras românticas: és a praga e o homem da minha vida. Roger, acertaste em cheio - quem me dera que estivesses aqui.

terça-feira, novembro 07, 2006

Tributo a Roy Orbison.

NÃO VÁ O CORAÇÃO TECÊ-LAS…

Bruce,

Escrevo-te “just in case”. Vim dar um beijo à velhota – queixava-se de não me ver há muito tempo – e não resisti a uma tarde com os aeromodelos. Imagino o teu sorriso, coisas de putos, não é? Passei grande parte da vida em aviões e sem ponta de prazer, quando a porta se fechava o destino do velho Otis fazia-me chamar a hospedeira e emborcar rapidamente o primeiro whisky de uma longa série terapêutica. Ah, mas estes são diferentes, é fascinante premir um botão e vê-los revolutear, pássaros que brincam uma última vez antes de partir rumo ao sul. Quando aterram, gingam sobre a relva como marinheiros saudosos de mar, gosto de os trazer até mim e pegar-lhes devagar, acaricio-os como aos cachorrinhos da minha infância. A nossa cabeça é engraçada - aqui estou eu a falar do princípio e preocupado com o fim, a máquina lançou o primeiro aviso. Um senhor apertão no peito, como um torno, o médico rosnou qualquer coisa acerca de provável isquemia, deve estar por aí a chegar a ambulância para me levar ao hospital, conheces o paleio dos queridos doutores, “mera precaução”.
Talvez, mas não é o meu palpite. E seria injusto partir sem dizer obrigado, sei que nunca o fiz, embora tenhas tido a amabilidade de não tomar conhecimento oficial do facto. Durante muitos anos sobrevivi à custa de um orgulho feroz, agressivo, quanto mais baixo descia de mais alto olhava as pessoas, e nestes últimos tempos, quando quis soltar a ternura, descobri que era tarde - as palavras não saíam e eu refugiava-me em frases como “eles sabem” ou “entre nós essas coisas são desnecessárias”.Cortinas de fumo para esconder pontes levadiças que já não sabia baixar… A gratidão é um sentimento estranho, o rancor segue-o a curta distância, ansioso por liquidar a imagem dos credores, suspiro de alívio, “estamos quites”.
Enternece-me poder garantir que tal nunca se verificou no que te diz respeito. Quando me deste a mão no Hall of Fame e depois na Califórnia, a dúvida nem sequer surgiu - acreditei que o fazias por amizade. Talvez esse físico de camionista tenha ajudado, joga mal com hipocrisias, lembro-me de um dos roadies – não direi o nome – afirmar que a alcunha de Boss te calhava às mil maravilhas, só era necessário um sindicato para proteger os que contigo trabalham. Disse-o furioso, mas ao ver-me soltou uma gargalhada e admitiu que não lhe apetecia trabalhar para outro patrão. Sabes bem como esses dois espectáculos mudaram a minha vida, e não estou a falar só do aspecto material, foi bom ver o George de novo - sempre avaro de palavras, tímido, balançando-se à minha frente, hipnotizado pelas biqueiras dos sapatos, qualquer coisa acerca de uma ideia que tivera e da qual falara a Bob e Tom. Se eu estivesse interessado e não interpretasse mal o convite… Dos quatro Beatles, George foi sempre o meu favorito, costumava assistir à minha parte do espectáculo nos bastidores, noite após noite, antes de me crivar de perguntas sobre o sucesso, como lidar com ele, o penúltimo acorde daquela canção, a razão dos óculos escuros, que considerava uma descoberta genial da minha parte destinada a construir uma imagem misteriosa. Ele era um perfeccionista, o seu talento cheirava a suor, ia até ao fim das coisas com uma teimosia pacífica. Não me surpreendeu que depois de todo aquele barulho se virasse para dentro e partisse em busca de Deus. Quando O encontrar, os ensaios lá em cima serão mais obsessivos, com a perfeição promovida a mero ponto de partida.
Naquela noite, tu e eu tocando juntos, vinte anos da minha vida atravessaram a sala com o brilho desses laser que vocês tanto usam. Lembras-te da frase de Tyrone Power sobre James Dean? – “Teve sorte, morreu sem conhecer a decadência”. Cruel, mas verdadeiro. Bruce…, não podes imaginar! Os clubes cada vez mais rascas, camarins minúsculos que fediam, patrões arrogantes, nunca perdendo a oportunidade e lembrar que me estavam a dar uma chance, o velho Roy já não enchia salas como em 63 ou 64. O barulho distraído dos copos, risos, horríveis por nem sequer maldosos, a completa indiferença pelas canções novas que ninguém queria gravar. Gente de meia-idade exigindo Pretty Woman para recuperar o fascínio de bailes longínquos, cinturas estreitas, cabelos fartos, promessas ao fim da noite, “amanhã telefono…” Hotéis de estrelas raras e pouco brilhantes, anúncios intermitentes pela janela, muito álcool, toneladas de recordações.
Sabes, nunca fui um rocker na verdadeira acepção da palavra e os primeiros tempos foram difíceis, as baladas na gaveta e esta voz lamentosa a tentar desesperadamente imitar Elvis. Como lhe invejei os quadris saltitantes que a TV considerava obscenos! Em 1956 já estava arrependido de ter deixado a Universidade e a gravidez de Claudette não melhorou as coisas, a grande dúvida residia em que papel falharia mais miseravelmente, cantor ou pai de família. Valeu-me o Phil, fez de Claudette o lado B de All I Have To do Is Dream, durante quatro anos escrevi para outros o que a editora não considerava adequado para mim, os desígnios dos senhores do vinil são realmente imperscrutáveis. Quando em 1960 me permitiram gravar Only The Lonely, senti que o futuro dependia daquele single, a porta já estava entreaberta e o pontapé armado. Lixei-os. Naquele tempo havia espaço para baladas, Elvis perdera o fôlego e os velhos rockers eram respeitáveis mas não imperialistas. Foram quatro anos bons e não deixa de ser engraçado ter sido eu a apadrinhar na estrada os meus coveiros. Não fui apanhado de surpresa, a primeira vez que os vi, numa qualquer cidadezita inglesa, dei-me conta de que eram especiais e arrasariam tudo o resto, os putos tinham encontrado os sacerdotes de fúria e candura.
Os Beatles foram os mestres dos equilíbrios impossíveis entre duas gerações e- como eu! – muitos outros passaram a viver no arame. É verdade que nunca fui um tipo alegre, os óculos escuros pareciam-me filhos legítimos dos neurónios, mas há pessoas abençoadas que nos fazem explodir o riso e enternecer o olhar. Claudette aceitava a minha melancolia, mas nunca se rendeu a ela, metia-me a vida pela boca abaixo à força, não existem piores tiranos do que os amados. “Roy”, dizia ela, “a depressão pertence ao palco – e ainda bem! -, alimenta-nos a conta bancária, mas eu e os miúdos queremos fazer um piquenique com relva, sol e formigas, vais ter de dar o braço a torcer e admitir que somos felizes”. E éramos.
Quando teve o acidente tudo se desmoronou, a força vinha dela, costumava chamar ao declínio “esta fase mazita por que estamos a passar”. Em 68 os miúdos morreram no incêndio e o meu primeiro pensamento foi “se ela estivesse aqui nada disto teria acontecido”. Sabes tu, os filhos chegam em vantagem, são nossos, foram desejados – às vezes! -, parecem-se connosco na opinião das avós, toda a sociedade vela para que sintamos bem como seria desnaturado não os amar. São paixões inevitáveis, pequenos favoritismos não alteram a placidez do quadro familiar, até quando os punimos o fazemos para seu bem, o amor parental aspira à condição de instinto. Mas uma mulher… Tanta gente por aí, escolher e ser escolhido, razões bem pouco respeitáveis, um riso, o ajeitar do cabelo, silêncios consonantes, a descoberta surpresa de pequenos-almoços sem relógio, uma forma diversa de nos rezar o desejo ao ouvido. Um amor divinamente livre, casual, a necessitar de paciência mas sem nunca se esgotar nela, duas pessoas na corda bamba, recusando a rede dos laços sanguíneos, um amanhã de cada vez. Perdoa a palavra megalómana, mas foram dez anos de felicidade, quando olho à minha volta chego a pensar que perdi mulher e dois filhos e mesmo assim fui um privilegiado.
Também agora, dor e ambulância chegam juntas, e contudo esperaram o tempo necessário. Desculpa os gatafunhos, creio ter escrito em contagem decrescente, ainda bem que não sou canhoto, o braço esquerdo aderiu à revolta do peito. Se acontecer o que pressinto, agradece aos outros por mim, sobretudo pelo prazer imenso de nos reunirmos de novo em palco, holofotes pesados e sorrisos cúmplices, o pivete dos charros de Bob, a voz cambaleante de George. Tomem conta de vocês e não fiquem tristes, no Céu ou no Inferno Claudette espera, cabelo curto e Harley-Davidson impaciente, vai-me obrigar a desistir para sempre dos óculos escuros. E seja qual for a estrada, vou percorrê-la de cara ao vento e olhos nus, mesmo próximos de mais. Um do outro e dos dela…

Olha para o que eu digo...

Reverendo assume «imoralidade sexual»
2006/11/05 22:17

Era contra gays, mas admitiu ter relações com prostituto

O presidente da Associação de Igrejas Evangélicas dos Estados Unidos, Ted Haggard, um destacado opositor dos casamentos homossexuais, declarou-se hoje culpado de «imoralidade sexual», após ter sido acusado de manter relações com um prostituto, noticia a Lusa.
Numa carta à sua congregação da Igreja da Nova Vida em Colorado Srpings (Colorado), Haggard assegurou que há muito tempo que luta contra essa «parte repulsiva» da sua vida. «Sou culpado de imoralidade sexual. Sou um mentiroso e um embusteiro. Há uma parte da minha vida que é muito obscura e repulsiva, e durante toda a minha vida adulta combati contra ela», referiu o reverendo.
Haggard demitiu-se sábado de líder da sua Igreja e da Associação Nacional de Evangélicos - que agrupa 30 milhões de fiéis - depois de uma investigação interna o considerar culpado de «conduta sexual imoral».
O prostituto masculino Mike Jones acusou esta semana Haggard de lhe ter pago durante três anos para manter relações sexuais. Jones assegurou que se sentiu traído depois de inteirar-se que a pessoa que ele conhecia como «Art» era, na realidade, um destacado pastor evangélico que clamava contra o matrimónio homossexual nas suas aparições na televisão.
O reverendo negou as acusações num primeiro momento, tendo admitido depois ter pago a Jones para lhe fornecer metanfetaminas e uma massagem num hotel de Denver (Colorado). Na carta à sua congregação, Haggard declara-se envergonhado da sua conduta e pede desculpa aos fiéis, exortando-os a perdoarem também quem o acusou.
Haggard, 50 anos, casado e pai de cinco filhos, e uma das pessoas mais destacadas do movimento evangelista nos Estados Unidos, foi incluído pela revista Time na sua lista de 25 líderes evangélicos mais influentes tendo assessorado a Casa Branca.

domingo, novembro 05, 2006

Em homenagem à sua Teresa, este fds de visita a Cantelães.

O homem do silêncio doce


E de repente aparece/um silêncio entretecido/em que já nada apetece./Em que tudo tem sentido. (Pedro Tamen).



O Zé Gabriel morreu.
Em 1989, o Aurélio Gomes desafiou-me para um programa na Rádio Nova. Nasceu assim O Sexo dos Anjos, projecto para três meses que durou oito anos. O diálogo, inicialmente direccionado para a educação sexual, cedo descambou – o Aurélio perguntou-me que livro trazia debaixo do braço, eu respondi A Insustentável Leveza do Ser e nunca mais parámos de falar sobre tudo. O João Gobern disse-o melhor do que ninguém – tratava-se de uma clara erotização da palavra.
E no entanto esse delírio verbal de trapezistas amadores jogava pelo seguro; bem ou mal, voávamos a coberto da rede que o silêncio do Zé Gabriel estendia. Aquele homem doce jamais procurou o crescente protagonismo que nós e os ouvintes lhe impusemos. Dedicava-se ao que amava apaixonadamente – o som. Aguentando com bom humor as nossas provocações, raramente acedendo a fazer um comentário no ar, aturando com estoicismo a minha incapacidade para estar quieto à frente de um microfone. E sendo ele próprio nos intervalos.
Aos poucos, reparei que lhe buscava o apoio do polegar virado para cima quando emitia uma opinião controversa, dava comigo a pedir-lhe conselho sobre as cartas a abordar, ouvia-me sistematicamente perguntar “e tu que achas?”. Ele achava muito e bem, mas sobretudo de um modo carinhoso. Lembro-me de dia triste e eu com canção do Sérgio Godinho debaixo do braço, “O que há-de ser de nós?”. À saída, abraçou-me sem perguntas e disse: “bela música. Vai ser o hino do programa” (tinha razão, acabámo-lo ao som dela). Recordo o seu prognóstico risonho – “nunca vá a África, doutor, olhe que não volta!”. Era um elogio, porque ele amava a sua Angola, as distâncias oferecidas aos olhos, o tempo recusando a pressa estéril, o erotismo da dança que, paciente, me ensinava. Enquanto o Aurélio, perdido de riso, dizia aos ouvintes que cenas menos próprias se passavam no estúdio!
Tornámo-nos amigos de infância que se conheceram já adultos. Atrasos que acontecem... Também as mulheres podem chegar atrasadas e ainda a tempo, a rapariguinha que um dia pediu para assistir à gravação não foi de modas – encheu-lhe o silêncio com as palavras de amor que nele pressentia. E eu acabei todo enfarpelado e padrinho de casamento!
Mas a doença chegara. E as perguntas dos ouvintes, que rapidamente se aperceberam de que lhes mentíamos a eles na tentativa de nos enganarmos também. Revejo o Zé no corredor do Hospital de Santo António, soro a reboque, não desejava receber-nos na cama. Orgulhoso, nunca lhe ouvi um queixume, só dizia “eu volto”. Com efeito. Para ser soterrado pelas cartas de boas vindas chegadas de todo o país. Que ele juntou às outras, a salvo da minha distracção, argumentando que eu deveria escrever a partir delas. Entretanto o programa acabou, o Aurélio procurara outros desafios e a Nova decidiu – bem! - não o substituir. Cerca de dois anos depois, após avanços e recuos vários, fui convidado a regressar. Tivemos uma longa conversa. Disse-lhe que podia estar enganado, mas achava que a minha presença não era pacífica para todos, previ o fim do programa na primeira esquina. E ele respondeu: “não lhe apetece fazer rádio comigo? Enquanto durar é bom”. Eu acertei, mas ele tinha razão - cada minuto foi uma festa, sob o olhar da Marta Santos, indecisa sobre a idade mental daqueles cinquentões. Quando, por sua vez, ela voou para outras paragens, foi-nos dito que o programa seria suspenso até à elaboração da nova grelha. Da qual, obviamente!, faríamos parte. O telefone jamais tocou. E devia, ao menos por simples educação, “desculpem lá, mas...”. Disse-o cara a cara a quem de direito, sem rancor: o Zé, ainda por cima a caminho do fim, não merecia tal desfeita.
Nos últimos tempos vimo-nos pouco. Se eu protestava, respondia sempre o mesmo: iríamos jantar quando melhorasse. Contrariado, aceitei-lhe religiosamente o pudor. Levou-o ao extremo, morrendo comigo em férias. A notícia chegou e sentei-me numa praça de Granada; pensando, egoísta, que já perdi dois amigos íntimos e é muito duro viver sem eles. Mas ao Zé, se houver um Juízo Final, tenho a certeza de revê-lo. Quando o anjo de serviço se dirigir ao microfone para anunciar os veredictos, fatalmente perguntará a alguém – “fazemos ensaio de som?”. E eu só precisarei de descobrir a nuvem de que se levantará um polegar, seguramente embalado por trauteio de música africana!

sexta-feira, novembro 03, 2006

De regresso à vida real:(.

"Há doentes que são amarrados e dopados em lares e hospitais"Alexandra Inácio, Bruno Simões Castanheira
A demência é assustadora mesmo para os médicos.
Maria do Rosário Reis, presidente da Associação Portuguesa de Familiares e Amigos de Doentes com Alzheimer (APFADA), não tem dúvidas em Portugal são "raríssimos" os técnicos especializados e até mesmo médicos sensibilizados para o tratamento de doentes com Alzheimer. A maioria dos lares, denuncia, não recebe este tipo de pacientes e os que o fazem tratam-nos mal. Hoje faz cem anos que a doença foi descrita pela primeira vez pelo neuropatologista alemão Alois Alzheimer. Em Portugal, apesar de não existirem estatísticas, as extrapolações apontam para mais de 70 mil pacientes com este mal. No Mundo são mais de 25 milhões."Há doentes que são amarrados às camas em lares e hospitais" públicos, denunciou ao JN. Erika Marcelino, uma das psicólogas da APFADA, acrescentando que a falta de preparação do pessoal técnico conduz muitas das vezes ao "excesso de medicação". "A forma mais fácil de controlarem os doentes é entupi-los de medicamentos", afirma.Uma maior comparticipação nos medicamentos ou medidas a pensar nos cuidadores, como a redução de horário, são alterações legislativas pelas quais há muito luta. Maria do Rosário contentava-se, no entanto, se os hospitais permitissem a entrada de acompanhantes com estes doentes. É que alguns, afirma, já chegaram a abandonar as unidades ficando perdidos depois. "O meu pai é capaz de gastar milhares de euros por mês para dar à minha mãe qualidade de vida", confessa Maria do Rosário. Os custos com a doença são enormes. No primeiro semestre de 2005, o Serviço Nacional de Saúde gastou mais de 5,6 milhões de euros em fármacos com indicação para Alzheimer. Em 2004 gastou 9,5. Os doentes pagaram quase onze milhões e mais de 18,6 nos mesmos períodos de acordo com dados do Infarmed.As comparticipações dos medicamentos rondam os 40% e as receitas têm de ser prescritas por neurologistas ou psiquiatras, o que é mais um entrave, alega Maria Rosário. Há poucos especialistas nessas áreas. "Um paciente que vá a um médico privado gasta na consulta o que poupa na comparticipação", afirma. Depois há imensos produtos essenciais que não são comparticipados, como as fraldas ou cremes."Só em medicamentos e fraldas são mais de 300 euros por mês. É sempre a somar". O paciente pode ainda fazer sessões de fisioterapia ou aulas de natação e se frequentar um dos poucos centro de dia existentes no país as despesas aumentam substancialmente (ler texto rodapé). Há ainda o sistema de ajudantes familiares. Formadas nos cursos da associação são consideradas cuidadoras profissionais. E numa fase mais adiantada da doença são necessárias três dessas técnicas para garantirem a vigilância dos pacientes de dia, à noite e aos fins-de-semana.

P.S. Recém-chegado da Mindinha, pasmo em face do luar de Cantelães. É como se Deus me tentasse a acreditar Nele.

quinta-feira, novembro 02, 2006

Comunicado.

A Comissão Disciplinar faz saber o seguinte:

1 - A falta em causa é grave, ignorar o nosso amado líder pôe em causa os fundamentos da causa murcónica.
2 - Assim, e por deliberação unânime, a ré será obrigada a contentar-se com pão e água no próximo jantar.
3 - Mais lhe serão fornecidos todos os comentários feitos pelo Noise desde o início do blog, os quais deverá recitar sobre um fundo de música sacra tocada pelos Fading Commission.
4 - E AINDA... - caber-lhe-á abrir e fechar as portas do Murcon todos os dias, mesmo que tais momentos sucedam durante a noite ou o funcionamento seja de 24 sobre 24 horas.
Ponto único - Não acatar qualquer dos pontos anteriores implicará morte por esquartejamento, maçã na boca, batatinhas assadas à volta e "posição central" no próximo repasto murcónico. Os restos serão distribuídos pelos convivas em tupperwares, de modo a poderem levar para casa e alimentar os bichanos.

Proceda-se.

"Ó SOUSA, comunique a sentença à acusada no seu covil de Gaya City".

quarta-feira, novembro 01, 2006

Chico.

Maria,
Fui ao Chico. Lera que agora se sente confortável em palco. Talvez, mas preferia-o quando tinha de emborcar whisky antes de enfrentar as pessoas para lá do biombo de um projector. Nesses tempos achava-o menos hirto, a timidez invadia-o todo e não apenas o sorriso de menino que conserva. Esquece, não é importante. O público adora-o, já o tinha no coração desde o primeiro disco, o primeiro cartaz nas paredes do Porto, o primeiro acorde, a festa no Coliseu era para ele, não por causa dele. Conheces-me, paguei para ver. E as cartas iniciais não me deixaram optimista, foi preciso ouvi-lo ciciar "Te Perdoo..." para sentir o arrepio que o homem sempre me provocou. Só voltei a tremer no Bye-bye Brasil, mas o cérebro continuou ao volante, quase imperturbável. E de repente, nos encores, desaguou em Tanto Mar... Um soluço inesperado. A necessidade absoluta de saber - mais alguém notava a diferença? Fixei o olhar na sua parceira responsável pelos sintetizadores; órgão; whatever! Ao longo do concerto exibira uma compostura doce, entre a admiração por ele e a solidariedade com a música brasileira em geral. Agora estava diferente. Todo o corpo ensaiando um balanço que o projectava, ondulante, para fora de si mesmo. Ela também preferia as nossas canções, amor! Abri garganta e olhos ao soluço com alívio. Mesmo a tempo, o maroto fez pontaria ao meu coração e disparou - "Agora eu era o herói/e o meu cavalo só falava inglês..." Desfiz-me encostado à parede.
Maria, Sexta chegou mais um avião à cunha de Londres. Desesperadoramente vazio, minha querida. Não aguento, vou mudar de táctica para te convencer a demandares a Inbicta. Sabes como? Liga o telemóvel. Assinarei o próximo sms com nome equestre - Silver, como nos filmes de cow-boys da minha juventude; Blue Diamond, the third, como os pobres bichos que, além de correr, aturam os emproados de Ascot;Mister Ed, como o cavalo falante da série televisiva da minha infância. Acrescentarei bbbrrr e hhiiiiii para dar cor e som locais. E o texto rezará - como eu... - um simples "I love you, will you please come home?"
Por favor, antes de responderes ouve o Chico, recorda-nos e ao Chico, pensa nas mulheres longínquas e esquivas que cantou - Bárbara, Ana de Amsterdam, Carolina - e não faças como elas; vem.
Com adoçante e com afecto,
Júlio.

Ponto da situação.

Maralhal,
O porta-voz da Comissão Disciplinar informa-me que as vossas opiniões estão a ser compiladas, de modo a poderem vir a desempenhar o seu papel no processo de decisão. A reunião da Comissão continua e não se prevê hora para o anúncio das medidas disciplinares, sobretudo depois de terem sido vistas a entrar travessas de scones, croissants, chá e caipirinhas:).

Adivinha.

Quem foi que esteve no jantar do Murcon, saiu do espectáculo do Chico e passou por mim SEM ME CUMPRIMENTAR???
A Comissão Disciplinar Murcónica decidirá em breve a punição exemplar a ser aplicada:).