quinta-feira, janeiro 31, 2008

A pedido:).

O silêncio dele não a pareceu surpreender. A cadeira voltou a um equilíbrio precário mas não quieto, disfarçou-se de prima de baloiço. Ela cruzou as mãos na nuca, gesto que permitiu a fuga da blusa ao cinto e pôs em realce a firmeza do busto - pequeno mas desafiador, os gostos variam, se lhe perguntassem a ele diria que...
(Ninguém lhe perguntou nada, foi uma ordem seca a surgir).
- Faça o quatro.
Fazer o quatro? Mas até onde podia chegar o amadorismo e falta de equipamento das forças de segurança portuguesa? E a seguir? - mandá-lo-ia caminhar em linha recta? É claro que o registo artesanal da investigação podia favorecê-lo, já não ansiava pelo balão, números são números e indiscutíveis, o mesmo não se pode dizer do equilíbrio em uma só perna, por definição instável, mesmo em abstémios furiosos.
(O que não era o seu caso...).
Fez um quatro hesitante. Não entre o cinco e o três, mas entre o chão à esquerda e à direita, sentia-se como um flamingo da Camargue que tivesse emborcado uma garrafa de Châteauneuf du Pape.
Ela abanou a cabeça, mas por vontade própria.
- Não o aconselho a guiar nesse estado.
Para o breu atrás de si,
- Lena, chama um táxi para o cavalheiro, se tem tanta massa para subornos é porque não está habituado a transportes públicos, muito menos de madrugada. Entretanto eu vou organizando os meninos para a toma da metadona.
E saiu.
Das curtas profundezas da carrinha surgiu uma rapariga frágil, saia travada negra, blusa branca, rosto menineiro emoldurado por cabelo de um loiro escorrido de tão fino.
- Sim, doutora.
Diligente, empunhou o telemóvel.
Doutora? Metadona? A pergunta a medo,
- Mas então ela não é polícia?
A garota, aparelho ensanduichado entre madeixa e face,
- Polícia?
Com evidente escândalo,
- Médica das melhores! E não lhe caem os parentes na lama por trabalhar numa equipa de rua.
Equipa de rua... Metadona... Os "meninos" à volta da fogueira, perdão!, da carrinha... Mas evidentemente - os mafiosos não passavam de toxicodependentes à espera de droga oferecida pelo Estado.
(Enquanto a praça de táxis não despertava, a miúda metera a segunda.)
- Bem lhe pode agradecer. No estado em que você estava, sem a injecção que lhe deu só acordava amanhã. Ou hoje na Urgência...
Uma raiva crescendo dentro.
- Perfeitamente, fui salvo pela Madre Teresa da medicina. Estou-lhe gratíssimo. E suponho que também a si, senhora enfermeira, presumo que me tenha desinfectado o rabo, o braço ou o raio do sítio em que me picou.
Ela disse o nome de uma rua e agradeceu. Depois baixou a voz até um sussurro doce e mortífero,
- O seu táxi é o 24. Não lhe desinfectei nada, só a vim buscar; não sou enfermeira, sou puta.
E também saiu.

quarta-feira, janeiro 30, 2008

Aviso à navegação.

Li em dois jornais que estaria hoje à noite presente numa iniciativa da imPORTO-me, para falar do namoro no tempo da outra senhora. Trata-se de um engano. Quando o Carlos Magno me convidou para tal iniciativa, aceitei, por se realizar amanhã. Com a mudança de data, a disponibilidade esfumou-se e do facto informei o Carlos. Imagino que o primeiro programa tenha sido transposto, ipsis verbis, de Quinta para Quarta, e daí o erro. Claro que o Manuel Pina, o César Príncipe e o próprio organizador colmatarão sem qualquer dificuldade a minha ausência, mas não gostaria que ela fosse relacionada com qualquer capricho meu de última hora.

segunda-feira, janeiro 28, 2008

A outra escrita.

Não lanço ao rosto do coração o rali todo-o-terreno em que tornou a minha vida nos últimos anos. Pelo contrário, estou-lhe grata, nunca invejei os que chegam ao fim do caminho sem nódoas negras, afectivamente puros. Mas preciso de o colocar entre parênteses na escrita. Ele não o consegue ou deseja fazer, "apenas" exige ao texto que persiga a arte. Eu, que tenho uma relação bem menos íntima com as palavras, espero mais delas - uma lucidez crua, sem os véus da interpretação, do significado inconsciente, da metáfora. Sim, mais; porque ambiciono a compreensão do que me rodeia e acontece, não acreditando em revelações à la estrada de Damasco. Resta o trabalho árduo. E as palavras no papel são ferramentas indispensáveis, mesmo uma folha rasgada com desânimo traduz o esforço de aproximação às verdades dos factos, estados de alma leva-os a brisa.

domingo, janeiro 20, 2008

Relendo.

Releio-me e vejo que mudei. Também eu cultivo a palavra, intérprete privilegiada que é de sentimentos, raciocínios, fantasias. Privilegiada mas insuficiente, algo se perde no processo de exteriorização, discurso ou escrita ficam sempre aquém da realidade interna. (Não falo dos poetas, que dão às palavras um mote e as deixam inventar mundo próprio em que mergulham o deles.) Porque desde a primeira letra reconheço a inevitabilidade de maior ou menor derrota, emprego-as com parcimónia e rigor, tento mantê-las a salvo da interferência das emoções. Ele é diferente, não lhes pede contas, escreve poesia envergonhada.
Mas contagiosa..., releio-me e vejo que mudei - por entre neurónios e papel esgueirou-se muito coração:(.

sexta-feira, janeiro 18, 2008

From London with love:).

Vai continuar a escrever-me. Não - vai continuar a escrever. A minha ausência é dolorosa, mas aceitável; a das palavras seria fatal. Foi com elas que me seduziu, serão elas a permitir-lhe sobreviver-nos. (Maria, não sejas hipócrita, decidiste que te seduzisse ainda antes de ele se decidir a tentar...). Vai continuar a escrever. E enquanto o fizer, pertence-me. Porque ninguém escreve sobre o Amor e sim sobre os amores. Os intelectuais diriam que Petrarca suspirava por Laura e desancava as mulheres reais. Estou-me nas tintas! Ouvi-o vezes suficientes para saber que Abelardo foi um sacana para Heloísa, Romeu e Julieta talvez se odiassem depois de uns anos de casamento, Cyrano era um cobarde que não teve a grandeza de levar o seu segredo de Polichinelo para o túmulo. Fui um público atento e deliciado das palavras, das palavras dele..., mas a beleza encantatória do espectáculo não me fez levitar, a minha alma permanece com os pés bem assentes no chão - é do nosso amor que fala na sua escrita. E eu - que o deixei e não me arrependo! -, em verdade vos digo: maldito seja, quando conseguir embainhar a pena.

terça-feira, janeiro 15, 2008

O roubo.

O teu sorriso… Agora posso admitir que o roubei, querida. Uma noite adormeceste com ele vestido e o meu foi-se apagando, à medida que este hoje invadia aquele na minha cabeça e o futuro se desenhava, inexorável. Era terrível, sabes? Terrível pensar que de ti apenas restariam o cheiro alucinado, as roupas não exigidas, as fotografias oficialmente rasgadas. Cerrei-te os lábios com um beijo hipócrita de boa-noite e meti-o na caixa de anéis que minha Mãe te ofereceu. Saí, a coberto desse dormir profundo, feito de consciência tranquila e corpo saciado. O homem da loja das chaves partiu a lima, o joalheiro gastou a lupa, o pintor gemeu por novas cores, o poeta zangou-se com as palavras ao decretá-las de um cinzento impotente. Derrotado, entrei numa igreja. Não pedi nada, por curta fé e longo remorso – onde já se viu? -, negar-Lhe a existência e exigir-Lhe cumplicidade em falsificação… O silêncio. A voz de minha santa Mãe, que nunca precisou de altares - “abre a nossa caixa”. (Assim te abraçava mais uma vez…). E os dois sorrisos lá estavam, tão gémeos como fomos no amor e no seu luto, querida. Voltei a casa e devolvi-te um, na secreta esperança de guardar o original. Que tolice!, o verdadeiro seria sempre o dos teus lábios. Que afloraram os meus, numa pergunta silenciosa que transformava o sono em crime de lesa-vida:).

domingo, janeiro 13, 2008

De quarentena.

Maria,

A amarga liberdade de escrever não te escrevendo.
E assim bordar a tristeza nas palavras,
sem receio que calem o teu sorriso.

sexta-feira, janeiro 11, 2008

O meu reino pela resposta certa:).

- Quero dizer, provavelmente foi o que parece, mas garanto-lhe que existem atenuantes…
(para o facto de a ter confundido como uma puta?)
- Mas mais importante é pedir-lhe desculpa pela minha inqualificável confusão de há pouco, que obviamente só o consumo exagerado de álcool pode justificar…
(se houvesse um balão por ali sopraria de bom-grado, talvez as agravantes na estrada se transformassem em desculpas no sexo pago)
Ela franziu o sobrolho e ele carregou nas tintas,
- Justificar, justificar não, uma tal grosseria não tem desculpa, mas a senhora Inspectora concordará que acordar em tão sórdido contexto baralha qualquer um!
Pela primeira vez fitou-o nos olhos sem piedade. A cadeira abandonou o equilíbrio precário e pousou as quatro pernas no chão. Solene, como irmã mais nova do módulo que levara Armstrong à Lua – “um pequeno passo para mim…”. A voz exibiu uma doçura gélida,
- Presumo, então, que foi arrastado para aquele quarto contra a sua vontade, meu caro.
Estaria enganado ou por baixo do gelo espreitava o sarcasmo? E que responder? Contra princípios, educação e medo de doenças sexualmente transmissíveis sem dúvida, mas contra a vontade… Explorou-lhe o rosto em busca da resposta certa, mas sem eco. Excepto aquele verde inacreditável, que parecia envergonhado por brilhar paredes- meias com castanho plebeu e o penetrava sem caridade ou perdão anunciado. Jesus!, como era bela a sua inquisidora.

quarta-feira, janeiro 09, 2008

Para esfriar os ânimos, prometo que não volto a escrever sobre "aquilo":).

Nem naquilo, nem em nada, ela continuava muda e ele atrás, sem coragem para tentar fugir ao pesadelo, as pernas bambas não lhe permitiriam escapar aos operacionais da organização, que a deixavam passar com respeito e o benziam com olhares turvos. O interior era ascético e mal iluminado – meia-dúzia de cadeiras, mesa, copos de plástico, cinzeiro a transbordar, paredes nuas. E a temida secretária, mas órfã de inquilino. Não por muito tempo, ela sentou-se e com um gesto de cabeça mandou-o fazer o mesmo. Está habituada a ser obedecida, pensou, enquanto seguia o cone de luz de um candeeiro caquético e grevista intermitente, forte candidato a curto-circuito. A inscrição na margem da mesa, letras minúsculas - “não consigo, merda, é o que dá não assumir a miopia!” -, meia-dúzia de palavras mais crescidas – “mas que Diabo…” -, a confirmação - Governo Civil do Porto.
A realidade atingiu-o como um raio – a fulana era polícia! À paisana e rota, mas polícia. O respeito que imaginara lá fora chamava-se medo, os “cúmplices” dela não passavam de peixe miúdo que o antecedera nas redes da lei. Gemeu baixinho. Transformar-se-ia no primeiro cliente da história da humanidade a ser chamado à pedra? Ainda por cima sem recordar o crime? Já se via a trocar uma carga de porrada por um telefonema a um dos pais, “estou? Vens-me buscar à esquadra? Não, não fui apanhado em excesso de velocidade, depois explico”. Credo!, tivesse a certeza que só apanhava uns tabefes e preferiria a versão filme de gangsters. Mas a súbita revelação teve o mérito de lhe despoletar a veia sabuja, habituado como estava a mendigar perdões por estacionamentos infames e pé pesado.
- Senhora Inspectora, isto não é o que parece…
(frase tipo de quem é apanhado na cama por marido ciumento, seria preciso fazer melhor...)

terça-feira, janeiro 08, 2008

Intermezzo.

Maria,

Parece que os prosadores lusos se queixam de dificuldades no que à escrita do sexo diz respeito. Problema deles, querida, não sou escritor. E por isso me atrevo a falar deste desejo que só foi obsceno enquanto secreto; e foi-o tempo de mais… O teu ventre. Ao qual não farei a injustiça de chamar liso, seria torná-lo um entre muitos. Recordo a sua doce ondulação, atravessada pela proa matreira e preguiçosa da minha língua, abandonado que foi o porto inundado da tua. Sentir esses olhos cravados no meu navegar entre bosque e montes, os dedos acariciando-me o cabelo em falso abandono, prontos a evitar que vagabundeie por países menos acesos. Descer. Exigir-te a prisão das coxas, antes de fazer desabrochar as margens desse rio, cujo caudal depende tanto do desmaio das tuas barragens como da vigília marota da minha boca. Ficar atento, sem me distanciar milímetro ou fantasia: os rins desprezando o solo, o gemido risonho, o grito abafado. Parar. O teu protesto, que esconde aprovação gulosa. De novo à estrada e aos degraus, até ao espasmo que me deixa maravilhado por te sentir longe, longe e mais perto do que nunca.
Maria, tenho a certeza que o prazer das mulheres é o quebra-cabeças favorito de Deus.
Boa noite.

domingo, janeiro 06, 2008

A céu aberto.

A noite, já de meia-idade e frescota. Retesou os músculos, pronto a desembestar rumo à esquina mais próxima. Duas ou três sombras masculinas, rondando penduradas em priscas ténues, arrefeceram-lhe o ímpeto; seriam figurantes – ou seguranças… - daquele filme de série B? Ela dirigiu-lhes um aceno familiar, o que em definitivo lhe paralisou pernas e vontade. Seguiu-a até à carrinha estacionada em frente, tão escura como os pensamentos dele. A porta das traseiras abrindo-se à aproximação dos dois. De repente os mânfios ao ar livre pareciam quase amigáveis, imaginou psicopata com os pés sobre a secretária, outros dois à ilharga, a porta a fechar-se-lhe nas costas e o silêncio acusador da rapariga fazendo sobressair a voz rouca de um Soprano paroquial - “então é este o menino da mamã que deu problemas?!”. Ai…
(Todos temos um preço.)
- Cem euros e não se fala mais nisto?
(Nisto o quê e porquê?)
O sacudir quase imperceptível e humilhante dos ombros dela não enganava – a oferta só lhe aguçara o riso…

sábado, janeiro 05, 2008

Enquanto os jogadores do Benfica se tentam alegremente esmurrar:).

Rés-do-chão, porta da rua ao fundo. E se arriscasse uma corrida? Metia-lhe as notas na mão de passagem, melhor ainda!, espalhava-as pelo chão; enquanto ela recolhesse o pão seu de cada dia, punha-se ele ao fresco. Olhou em volta, receoso de eventual chulo veterano de clubes de fitting. À esquerda, dois sofás de cor indefinida escoltavam mesinha engalanada por uma jarra com flores artificiais. À direita um simulacro de recepção, onde dormitava mulher de idade indefinida, decote generoso mas deprimente e fio de saliva escapulindo-se pelo canto da boca. O olhar dele, talvez de tão angustiado, despertou o Cerbero – a matrona verteu um esgar sardónico e deixou cair sentença definitiva: “não aguenta o vinho quem quer, meu janota, só quem pode. A morte e a garrafa marimbam-se para o dinheiro dos paizinhos.” E da meditação filosófica regressou à catatonia vigilante. No balcão, que a julgar pelo trajecto da cabeça em breve lhe serviria de travesseiro, papel escrupuloso informava os clientes dos preços - por quarto e por hora.

sexta-feira, janeiro 04, 2008

Dead man walking...

Cabeça encostada ao ombro da soleira, mirou-o com olhos pouco dispostos a nova pergunta sobre o bem-estar dele. Girando cento e oitenta graus,
- Venha comigo.
Seguiu-a com a obediência culpada e temerosa de um cachorrinho que acabasse de pecar no tapete da sala. De rabo entre as pernas, sim. Mas não de orelhas murchas! Sintonizou-as e aos olhos, estudando as margens de um corredor interminável; que afinal terminava numas escadas, apenas para reaparecer no andar de baixo. As portas que foi ladeando não eram monótonas: desta emanava um silêncio ameaçador, daquela espreitava uma cabeça desgrenhada, de uma outra subiam gemidos de cama e gente que, pese embora a delicadeza do momento, realçavam no seu espírito a elegância provocante do andar dela. Um tipo em camisola interior, que procurava um armistício entre as fraldas da camisa e calças sufocadas por imponente barriga, saiu com estrondo de um dos quartos e passou por ele a correr, “chiça, que é tarde. E nem sequer valeu a pena!”. Ambas as afirmações lhe pareceram muito adequadas…

quinta-feira, janeiro 03, 2008

Isto pode sair-lhe caro...

Teve um sobressalto. O “inho” final dispensava apresentações, BI, juras ou confissão arrancada a ferros – era galega. De novo a recordação do Avô lhe surgiu, amante das touradas em Badajoz, de onde regressava com a alma lavada pela hombría de la faena e os sentidos exasperados por espanholas de saia bailadora, sinal na cara e um leve cheiro a suor que jurava não suportar em mais nenhuma mulher no mundo, incluindo a sua! E ali estava ele, tantos anos depois, por sua vez com uma espanhola na lapela. É verdade que galega… Fazia a sua diferença, irmãos que vivem na outra margem do rio e se divertem a falar com os portugueses enquanto os madrilenos não entendem peva, mas não interpretara as palavras dela num registo fraternal. Como agir? E a pergunta regressava – antes ou depois de?
Decidiu-se pelo antes de. E estendeu o ramo de oliveira sob a forma de cinquenta euros, dos quais bem lhe custava separar-se, mas decidira sair daquela enrascada o mais depressa possível e o dinheiro faz milagres em sociedade capitalista de consumo.
- Aqui tem. Foi o álcool. Não precisa, perdão!, precisamos de fazer nada, mas compreendo perfeitamente que o seu tempo é precioso, espero que considere o preço justo…
(leve sonoridade televisiva…)
- … se não, fará o favor de mo dizer sem embaraço de qualquer espécie…
(agora inventara uma puta envergonhada…)
- e eu…
(a carteira escancarada.)

quarta-feira, janeiro 02, 2008

Ah, ela é isso...

Deixou-se ficar encostada à soleira da porta, esgar ao de leve trocista, em silêncio observador. Que ele aproveitou para a estudar também e pensar que o mundo pós-moderno anda perigoso, sem fronteiras entre profissões, morais e até sexos! Não era o caso, mesmo em coma alcoólico tê-la-ia reconhecido como filha de Eva, apesar do cabelo curto e arrapazado. E ruivo… (Por um desses preconceitos que fazem as pessoas garantir que os ciganos vendem drogas e os padres pecam - e não com a rata que limpa a sacristia… - estranhou a ausência de sardas.) Os olhos saltitavam entre o castanho normal de catálogo e um outro, esverdeado, conforme a inclinação da cabeça, que ora repousava na soleira da porta, ora ameaçava refugiar-se no peito, escondendo o riso. Era alta, embora tal opinião fosse tristemente influenciada pelo metro e setenta rafado dele. Vestia um blusão de couro negro, desabotoado no morrer das mangas e em pescoço moreno debruçado de camisa branca. Mãos longas, coroadas de unhas não menos longas que exibiam pequenas lantejoulas (?), talvez úteis no exercício da profissão ao ar livre e de noite, sempre eram mais discretas do que um triângulo de automóvel. Busto esbelto, mamas discretas, cintura fina por baixo de cinto largo. Jeans muito justos que deixavam adivinhar coxas robustas, com muito trottoir por baixo, como diria o Avô, sempre pronto ao francesismo que lhe recordasse Paris. Os inevitáveis remendos e rasgões. À pressa, não conseguiu perceber se eram honestos ou semelhantes aos que as suas amigas faziam nos delas. (Quando os não compravam já esfarrapados e por isso mais caros, enigma que jamais conseguira decifrar.) Sapatilhas anónimas e sujas de lama. Por entre o nevoeiro neuronal fantasiou noite chuvosa, apanhara-a – ou fora por ela apanhado… – a meio do turno. Coitada!, blusão e cabelo também estavam molhados, só os chulos praticam a prostituição a seco e com boa música nos automóveis.
Foi quando…
- E como se sente agora o meniño?

terça-feira, janeiro 01, 2008

Tcham, tcham, tcham, tcham!

Deu dois passos rumo à porta, pé ante pé, receando despertar algum vespeiro assassino de putas e chulos, “agarrem-no, que foge sem pagar!”. E haveria com que pagar? Arrepiado, meteu a mão no bolso (deixando a consciência para mais tarde…) - a carteira estava lá. Em contrapartida, nem sinal de preservativos, que outros preços se arriscava a pagar pelo que não sabia se acontecera? Parou. Bolso, logo calças… E o resto, amarrotado mas de guarda à pele, galinácea e não de frio. Estava portanto vestido. Porque se não despira ou por alguém lhe ter coberto a nudez, tão pecaminosa como flácida e inútil? A julgar pelo profundo desconsolo adormecido que reinava entre pernas a segunda hipótese… tinha pernas para andar!
Como ele fazia, até a mão direita afagar a maçaneta da porta, com gentileza temerosa de rangido atroador naquele silêncio afiado. Em silêncio e sobressalto a retirou e deu um passo atrás, mais depressa não o faria se queimasse. Não era o caso. Simplesmente girava, cúmplice de dedos que não os seus. Sem dúvida à míngua de óleo, mas sobretudo com uma lentidão exasperante. Preparou-se para desculpa apressada ou murro optimista, mas não porquês. As respostas que se danassem, precisava sair dali e atropelaria quem lhe atalhasse o caminho. Mesmo em teórica passadeira para peões!, o medo que crescia dentro de si preparava-o para tudo.
Menos para ela…