Maria,
Céu aberto a um azul tão longo que se misturava com o de águas já curvas e as gaivotas em terra. Como estátuas, Pena Ventosa acima - que tormenta as perseguia? E porque se encarniçavam naquela invocação feroz do meu olhar? Maria, montavam guarda. Não viradas para fora da cidade, mas para dentro; não receosas da ira da Natureza, mas compungidas pelo desleixo dos homens. Cada uma velava, acusadora, um telhado desfeito do meu Porto. E são tantos...:(. Clandestinos; escarranchados sobre águas-furtadas que apenas adivinhávamos quando íamos pelas ruelas ao Domingo de manhã; margens feridas do céu que espreitava para lá da roupa a secar; cascos esventrados fugidos para os mastros de navio macambúzio em doca seca; cicatrizes que já nem recordam o sangue esvaído. Subi a um terraço da Rua das Flores, Maria, e vi cascata em ruínas jorrar de uma Sé lívida de asco, vergonha e espera inúteis. E as lágrimas que me turvaram os olhos serviram de tiro de partida ao voo das gaivotas. Que não as confundiram com promessa de chuva, mas tomaram como testemunhas de que eu percebera - a tempestade em terra não abrandará com uma simples mudança de vento...
40 comentários:
MEU CARO PROFESSOR,
Percebi no seu texto, uma certa forma de amar a sua cidade. Que é um bocado difícil para quem chega.
Não sei se é isto a que se refere, mas reconheco-lhe, à cidade, boa capacidade para receber.
E mais não digo posso espalhar-me. E não gosto disso.
Mas deixo-lhe um abraço de consideração. E peço-lhe que me recomendo ao seu tio CARLOS GUILHERME FERREIRA.
Respeitosamente,
JOÃO BRITO SOUSA
João,
Claro que o farei com todo o gosto:).
Professor, desculpe-me qualquer coisinha mas este seu post está out ! O que é que interessa que a Sé esteja a cair aos bocados se só lá mora gente feia ?! Triste seria ver a gente bonita da Foz sujeita a tão lúgubre cenário. Tudo o resto são cantigas... demodês.
O meu bisavô ("avô dos santos" - porque vendia santos) morou 60 anos na ruas das flores. Retirou-se para Paços de Ferreira, terra do seu clube, para descançar. Morreu aos 101. Só fui à casa na rua das flores para ir buscar as carcaças..
Dessas carcaças guardo um desenho da torrre dos clérigos, datado de 1956, com a seguinte texto:
"Dedicado à torre dos clérigos:
Tod'os dias sessentanos, da minha janela te vi...
Peço-te não chores mais por mim basta o que choro por ti!"
O texo deduzo que foi adicionado quando já radicado na capital do móvel! :) Homem que, pelos vistos, também amava o Porto!
A partir dos 1ºs andares o Porto está em plena degradação.
Não convém olhar para cima.
Seguir-se-á a dos rés-do-chão. Sugere-se não olhar de todo.
Boa tarde.
É triste...e o pior é que "a tempestade em terra não abrandará com uma simples mudança de vento.."
FDL(10.34)
Não deixas de ter uma certa razão, o que é triste, também.
FDL 10.34
Os homens também choram...
e os "Cavalos também se abatem":)
Caro Professor!
Como o compreendo...
Tendo nascido na freguesia da Se (o que me da o direito, julgo eu, de me intitular 'tripeira de gema'), nao vivi no Porto ate a entrada na Universidade. Depois nao consegui sair... a nao ser para o estrangeiro...
E as saudades sao sempre muitas: de gentes mas tambem de sitios, de memorias!
E tambem fico triste a ver esta bela cidade a ser tao maltratada.
Beijinhos,
Coccinelle
P.S. Como ve, mais solidariedade 'germanica'!
Olhar 3:09 PM
Mesmo os que passam a vida a relinchar ?!
FDL 6:35
Tem nada a ver, ou terá?:))))
Agora a sério.
Foi em "associação livre".:)
Escrevi: os homens também choram
e lembrei-me do título do livro do Horace Mccoy...
Mesmo as "fotografias" de tristes realidades podem ser belas. É o caso. Sei que é um "lugar" comum dizer(mos) que escreve bem... mas escreve. E o texto parece uma janela aberta sobre a cidade ;*
Bom fds
Olhar 8:23 PM
... and the truly manly men never dance.
fdl
Nem mais:))))
Morrerão as cidades?...Se não morrem atravessam agonias lentas que acabam estampadas no rosto. Mas o pior, é que a visão da cidade que se maltratou não descola da ideia de que lá vive gente que não é feliz...nem um bocadinho!
Texto lindo e triste a puxar a lágrima. Também eu sofro com o estado a que chegaram alguns edifícios desta cidade com uma alma única.
Mas... professor!!! Se não chega que os ventos mudem, vamos buscar furacões e ciclones.
A minha mãe ensinou-me que "a palavras loucas, orelhas moucas". É a sabedoria do povo. Mas cá no Porto, somos "curtos e grossos". Por isso, para esse fora-da-lei, aqui vai: as gaivotas são mais sensíveis e "humanas" do que ele. Se calhar até reconhecem as obras de arte e a importância da História. O que não acontece com ele, não é?
Peço desculpa ao Professor por estar a dar importância a quem não a merece.
O que escreveu é lindo, muito lindo e o Porto não vai deixar morrer a sua alma.
Elisabete 10:58 PM
"Por isso, para esse fora-da-lei, aqui vai: as gaivotas são mais sensíveis e "humanas" do que ele."
;-)))))
Gosto muito da cidade do Porto. Centralizou, muito, da minha juventude, quando olhar para a já existente degradação, não era mais do que um pleonasmo de Portugal, país pobre. Hoje, percorro a cidade pelos locais mais sombrios, vielas mais estreitas, casario mais antigo e a sensação de pobreza lá continua. Nas pessoas, sim. Mais, ainda, no casario mal tratado, nas condições higiénicas que a miséria arrasta ou que a atrai. Mas mais, muito mais pobreza, será a daqueles que têm tido nas suas mãos a possibilidade e nas suas acções a incapacidade para dar à cidade do Porto a luz e o brilho que a sua beleza, história e gente merece.
Enquanto que, grandes cidades europeias, usaram boa parte dos fundos da UE para a recuperação de grandes centros históricos, hoje, visitados por milhões de turistas e fervilhando de vida e comércio, em Portugal, desbarataram-se parte desses fundos em inutilidades.
Como eu gostaria que o Prof. Júlio tivesse escrito este texto há 20 anos! Para lembrar o que foi o Porto.
Só quem ama (a cidade) sofre por ela. Se tantos assim no Porto a amassem, não chegaria um certo desastre sócio/urbano a tal ponto.
Eu gosto do Porto, e muito. Tem recantos que nos abraçam no seu regaço. E calor humano, que é coia que vai rareando em cidades de vizinhaça fria.
E lá estarei a 14 de Março com a familia na Casa da Música, para ouvir Bach.
ATENÇÃO:
Não confundir!!!
Este post é 1 introdução ao módulo de:
« IDENTIDADE E CONSERVAÇÃO DO PATRIMÓNIO I
- Do património edificado »
:):)
- Como não?
Conservar a nossa identidade pessoal também passa pela conservação dos nossos sítios.
Nem todos darão por ela, mas é uma enorme verdade!
E os nossos sítios vão dos nossos cantos caseiros aos nossos cantos na urbe.
Os arquitectos de agora falam na «cidade feliz».
Lindo, deram no bingo! (embora a produção ou a omissão legislativa deste governo nessa matéria seja confrangedora... e remeta os ditos arquitectos para uma grande "vala comum"!)
Tarefa muito complicada esta.
« A tempestade em terra não abrandará com uma simples mudança de vento...»
Pois não!
E não é que tudo isto passa também por nós?
Temos de reparar mais nas gaivotas... :):)
Já é um começo (para estarmos mais perto da acção).
"... passeio pelas ruas da minha cidade... um cheiro intenso a vida, um odor repleto de vivências, aquilo a que chamo de experiências, de seres contidos em si mesmos e de seres virados para o para lá de si... pessoas que passam e pessoas que estão... vivem e não sabem que vivem porque apenas são... mas olho e vejo ao meu redor essa vida que não se vê e que não sai nos noticiários dos jornais televisivos nem nas parangonas dos tablóides... cheiro o perfume da urina nas esquinas e o sabor do odor do peixe frito nas varandas... o exalado pólen que vem das faias e das margaridas... o zunir das abelhas... vejo aquela mãe naquela varanda de peito de fora a amamentar o seu filho... vejo aquele miúdo traquina descendo a rampa no seu triciclo... os trilhos do eléctrico apanham um tacão desprevenido... e o senhor João da Camisaria Moderna, à porta, a todos que passam, dirige o seu cumprimentar sorridente... e ali vai a varina de cabaz à cabeça apregoando o carapau e a sardinha... no café do senhor José, o Soares está sentado a tomar a sua meia de leite com uma meia torrada e ao lado a senhora Miquelina assoa o nariz ao avental enquanto espera pela filha que foi ao hospital com o neto que havia rachado a cabeça a jogar a bola ali para os lados dos Guindáis... a vida percorre-me as veias como eu percorro a vida pela minha cidade... o Austin do senhor Carvalho acabou de passar e o fumo do escape aquece o chão que piso... a minha cidade tem vida e ninguém dá notícias dela... a vida não é notícia; esta apropria-se da morte que lhe dá valor e a desgraça vende; a guerra faz subir as audiências e o terror instala-se e provoca frenesim e a adrenalina sobe na pesquisa de mais um caso escabroso para contar... a minha cidade não tem notícias para dar... a minha cidade está viva e não vem nos jornais nem aparece nas televisões... e a minha cidade não tem nome nem vem no mapa dos homens... está apenas no meu coração...o meu Porto..."
Telhados defeitos, prédios cinzentos e fachadas tristes tornam uma cidade feia, mas pessoas antipáticas, frias, distantes e vazias tornam-na ainda mais feia; nisso Lisboa perde para o Porto.
yulunga 2:42 PM
"... nisso Lisboa perde para o Porto."
My sister in arms: isso não é bem assim!
Vamos lá a ver de que Lisboa (e de que lisboetas) estamos nós a falar. Há várias Lisboas e vários tipos de lisboetas. Muitos nem nasceram cá...
Assustam os verdadeiros bandos... Algo se passa!
Fora de Lei
Não te sei responder a isso. Não costumo perguntar às pessoas "feias" de onde são naturais.
Eu gosto muito de observar pessoas e noto que de um modo geral à medida que se desce em direcção a sul as pessoas são menos genuínas.
Como disse a Laura
"Este post é 1 introdução ao módulo de:
« IDENTIDADE E CONSERVAÇÃO DO PATRIMÓNIO I
- Do património edificado »
Pois! Este deixar degradar a olhos vistos de património, este não interesse em recuperar, é pouco pouco ou nenhum investimento na cultura.
Ontem no programa do Carlos Malato, Carlos do Carmo disse uma verdade absolutamente fantástica e qualquer coisa do género: enquanto a cultura não andar a par da economia não crescemos enquanto país.
Contou também o facto de após ter recebido o prémio, ter sido felicitado através de telegramas enviados pelo Primeiro Ministro espanhol e pela Ministra da Cultura. Penso que demonstra bem o peso que a cultura tem para os espanhóis.
yulunga 7:38 PM
Não me digas que achas os alentejanos pouco genuínos ?!
yulunga 8:47 PM
Tratando-se dos Prémios Goya, com cerimónia de entrega no Palácio dos Congressos de Madrid e tudo, é natural que os responsáveis pela Cultura do país vizinho se dirijam aos agraciados. Mas se a Cultura tivesse que andar a par da Economia para um país crescer, então os EUA ainda estavam na Idade da Pedra...
Fora da Lei.
Se calhar genuíno não foi a palavra correcta para o que queria dizer, mas agora também não me ocorre substituta.
Yulunga e FDL
Eu sou Lisboeta. O meu pai também já o era. E não gosto de Lisboa. Perdeu a alma. A Lisboa que amei deixou de existir depois de 1975. As hordas que a avassalaram descaracterizaram-na. Não é mau nem bom. Nem o lamento. É o fluir da evolução dos tempos.
Reconheço que o Porto se aguentou melhor ao embate. Manteve-se ainda Porto. Até quando? Quem sabe? Até quando a memória do que falamos agora por aqui se manterá? Um dia alguém achará ridiculos estes assomos de paixão pelas urbes. Outras hordas hão-de chegar. E as cidades, quiçá as civilizações, não resistirão. Do que falamos aqui é de memórias de uns tempos que nos foram agradáveis e nos sentiamos felizes. Talvez porque eramos novos. Talvez
AQUILES 11:42 PM
Aquiles, não sei concretamente que hordas serão essas mas suponho que se refere aos pretos e aos retornados. No entanto, já nos anos 50-60 Lisboa tinha sida "avassalada" por hordas de beirões e alentejanos (embora os últimos se tenham deixado ficar mais pelos arredores: Margem Sul, eixo Amadora - Cacém, eixo Sacavém - Alverca, etc) e não foi por isso que a cidade se descaracterizou.
O que descaracaterizou Lisboa foram os 200.000 habitantes que a cidade perdeu nos últimos 20-30 anos pelo facto de não terem possibilidades materiais para habitarem na sua cidade. E desses 200.000, a esmagadora maioria não são genéricos lisboetas, são alfacinhas. Hoje há, porventura, mais alfacinhas a viver fora de Lisboa do que nos chamados bairros populares...
Mas ainda bem que o Porto (ainda) não é assim. Só que, infelizmente, também há-de lá chegar. O Porto de hoje, mesmo em termos de "paisagem humana" já não é aquilo que era há 30 anos atrás, por exemplo. É apenas uma questão de tempo; a involução social a que se assiste no mundo inteiro tratará do resto.
FDL
As hordas a que me refiro são o aumento brusco de população que a cidade teve num ano, não só com os que retornaram, mas também com os que acederam à cidade que de repente proporcionou o quadruplo de emprego, sem ter aumentado a produtividade. mas isto sou eu a divagar.
Concordo em pleno com a sua ultima frase: «É apenas uma questão de tempo; a involução social a que se assiste no mundo inteiro tratará do resto.»
"...e as cidades implodirão..."
Muito bonito e pleno de significado.
Bravo, professor! O senhor escreve como um príncipe.
A sua escrita apura como o vinho do Porto.
:)
Se é sempre Outono o rir das Primaveras,
Castelos, um a um, deixa-os cair...
Que a vida é um constante derruir
De palácios do Reino das Quimeras!
E deixa sobre as ruínas crescer heras,
Deixa-as beijar as pedras e florir!
Que a vida é um contínuo destruir
De palácios do Reino das Quimeras!
Deixa tombar meus rútilos castelos!
Tenho ainda mais sonhos para erguê-los
Mais alto do que as águias pelo ar!
Sonhos que tombam! Derrocada louca!
São como os beijos duma linda boca!
Sonhos!... Deixa-os tombar... Deixa-os tombar.
Florbela Espanca
Um olhar terno, pesaroso e extropectivo sobre o Porto... sim, muita coisa esventrada, morta, agonizante no coração da cidade!
Fique bem!
http://www.youtube.com/watch?v=hbbWxo-3CdQ&feature=related
Boa tarde! :)
Olha Maria, o Porto tem espírito. Não só na Foz, a tal de gente bonita. A beleza, como tu sabes, é mais dos olhos de quem vê. E os olhos vêem com a mente e o coração.Simultâneos ou à vez. Julgamos domar a mente e não o coração. Só julgamos, Maria.Sinto-lhe o espírito nos telhados velhos, nas gentes da rua, na voz de quem lhe pertence a vida toda, e percorre ruas com a naturalidade de estar no corredor de sua casa. Gosto dele visto de Gaia, com a luz da tarde a vesti-lo. E é assim como se um amor de todas as coisas fosse nascendo da paisagem. Uma ternura de tudo onde sei que também estou. Esquecido de mim. Só a harmonia nos dissolve sem nos ofender.
E desculpa o monólogo
O chato da chuva é que lixa o arame farpado...
A alma do Porto são as gentes...aprendi isso quando me senti em casa 700 km longe de casa. Agora que no sul não sejamos genuínos...eu não me sinto pouco genuína e sou algarvia dos pés à cabeça...gente boa e má há em todo o lado. Agora que o Porto está a perder compostura, ah isso está. À minha sogra caiu-lhe uma parede da cozinha! E os senhorios não querem saber. E o monte de casas vazias, sem conservação, é triste. devia haver alguém que se preocupasse com isto e agisse. Mas o isso não dá dinheiro...o futebol sim!
Depois de ter passado anos da minha infância na Rua Anselmo Braancamp, ao lado do Júlio de Maria Clara, um pouco mais abaixo, na Rua Firmeza do Pedro Osório e seus pais e uns anos mais tarde, pela D. João IV veio o Pedro que é Abrunhosa, fui viver para a Rua das Flores, onde meu pai ainda vive, como diria Fernando Mendes, pegado à farmácia.
Conheço bem os becos dos Pelames, Pena Ventosa, Mercadores, Escura, Grilos, etc. porque fiz parte de uma equipa que estudou e ajudou famílias carenciadas daquelas pobres ruas.
Vive lá gente feia, porca e má, mas também encontramos muitos e bons rapazes e raparigas, com mais ou menos idade.
Estou afastado daquela realidade há mais de dez anos, mas penso poder afirmar que a maioria das pessoas que por ali vive ainda são capazes de dar o "coiro" para salvar um amigo. Os porcos, feios e maus, são mais aqueles que para lá são empurrados pelas más políticas de combate aos diversos tráficos.
É pena que as inúmeras "limpezas" feitas naquela zona se limitem às fachadas, esquecendo os interiores, das casas e das pessoas.
Tenhamos esperança que um qualquer COZIDOHARB venha dar vida àquela maravilhosa cascata e a toda a baixa da Ribeira ao Bolhão, passando pelos Lóis, Mouzinho, Flores, Caldeireiros, etc. É uma grande obra, mas já perdemos muito tempo e dinheiro com outro HARB que nunca deixou de ser CRU.
Júlio, daqui a dez anos, quando fizermos 69 anos, a paisagem da nossa querida Sé, será outra com toda a certeza.
Ou fizeram alguma coisa e estará melhor ou nada fizeram e já caíram metade dos prédios (se calhar o desejos de muitos)
Aquele abraço do
HENRIQUE SAMAGAIO
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