quarta-feira, dezembro 31, 2008

Circular personalizada.

Gente,

Confesso que não me dou bem com alegrias, decisões ou rituais de passagem com data marcada:). Mas é sempre boa altura para vos desejar 365 dias de luz. Mesmo que literal ou alegoricamente vacilante, como a do meu Porto:). Um abraço grato a todos!

quinta-feira, dezembro 25, 2008

A Alucinada Família.

Maria,

O estalar da madeira no silêncio da casa, que me acolheu sem perguntas na ressaca de mais um Natal. A mesa que se espreguiça, para meu espanto. As cadeiras multiplicam-se nas margens dela. Apago a televisão, desligo o computador e espero, não acredito em caprichos da mobília sem objectivo ou lugares vazios para a eternidade. Não foi preciso esperar tanto...
Minha Mãe à cabeceira. Um sorriso doce na minha direcção, antes de sondar as frinchas da porta em busca de correntes de ar assassinas. O gesto de satisfeita aprovação. Um último relance em volta, o aquecedor já crepita, "Júlio, querido, podes vir sentar-te".
O meu Velho e a sua lendária elegância: casaco, gravata, colete, botões de punho, vinco das calças, a risca intransigente que lhe separa os belos cabelos brancos. "Obrigado, Maria". (Também a trata assim...). O afecto menos pacífico do que o de minha Mãe, somos amantes circunspectos, os dedos afloram-me o rosto quase a medo e correm para o refúgio do dela, que todo se ilumina. Assim, lado a lado, sem um gesto, transformam o mundo em redor num gigantesco armazém de adereços inúteis.
Ou talvez não... Minha Avó chega por sua vez. O genro saúda-a com graça carinhosa, "ah, a Rainha Mãe". Ela desafia-o com a arrogância divertida que a trouxe de uma viuvez próxima da miséria aos camarins dos teatros em que a filha cantava e ele as conheceu; a paixão foi a dois, mas o casamento a três. Observa-me cuidadosamente, se parecer magro ou triste ficarei em maus lençóis!, o menino dela ofende-a se não irradiar felicidade.
Os outros... O segundo marido de minha Avó, ensinou-me a fazer palavras cruzadas e a ver um homem que chora sem vergonha, mansamente; o Pierre, olha para o caos reinante e abana a cabeça, o melhor amigo é um caso perdido; o Zé Gabriel, a mão gulosa avança para o leitor de CDs e recua, a minha toma o seu lugar, sem música não ficará.
E os outros depois dos outros! Os meus Avós paternos, o Rui Alcobia, George Harrison, John Lennon, Zeca Afonso, Ballester..., a mesa, de tão longa, não permite que os reconheça sem viagem longa. Mais tarde. Agora ocupo a outra cabeceira e espero.
Meus Pais fazem um sinal, tão entrelaçado como os corpos de Fred Astaire e Ginger Rogers, e o Natal começa, Maria, a realidade é a velhice da imaginação! Repara no lugar vazio a meu lado, querida, espera por ti.
E eles também...:).

sábado, dezembro 20, 2008

Domingo à noite.

Maria,



A severidade risonha que eu amava, por o ralhete já esconder o afago e o "nem penses" o "porque esperas?":).
Cheguei de Cantelães e saboreei uma vez mais Mystic River. Tudo o que me rodeia desagua em ti... O bar, os amigos, o comentário de alguém, "adorei As Pontes de Madison County". O meu vício pelos consensos fáceis e as frases feitas por outros - "É o último dos grandes". Aquele sorriso com que me fazias sentir um puto superficial, o meu amuo, o esquecimento. E um outro filme do velho Clint, a minha provocação, "mais um silêncio snob, querida?". E tu, manipulando a minha frase -´"É o único dos grandes que se tornou grande". Tinhas razão, claro, ambos o pressentíramos, extasiados, depois de ver o espantoso e inesperado Bird. O homem passou para trás da câmara e deixou de ser um ícone, "entreteve-se" a realizar obras-primas. Como Mystic River: uma história, a narração, os actores e o absurdo da vida, quem precisa de efeitos especiais?
A severidade risonha que eu amava. Este desejo apressado, a cumplicidade obediente do comando. O sobrolho franzido, "terás reparado que estava a ver o filme?". E a minha resposta, digna de uma daquelas vozes mecânicas que anunciam os pacotes da TVCabo: "Não há problema, estão sempre a repetir". O teu riso maroto, a voz já misturada com o meu pescoço, "és capaz de fazer o mesmo?".
O sim da minha paixão adolescente:).
A prece humilde do meu corpo envelhecido...

terça-feira, dezembro 16, 2008

A dois tempos.

Maria,

Quando escrevia a um cinzentão qualquer, teclado e mãos revoltaram-se e meia-resposta desarvorou. Conheces a minha assinalável ignorância tecnológica, não culpei azar ou praga divina, seguramente premi ao de leve teclas que deram o tiro de partida. A funda humilhação; o medo à flor da pele - que declínio cerebral acelerado espreita por entre dedos trôpegos?
Como sempre, o olhar na direcção da tua ausência, em busca de auxílio. (Pareço católico órfão, rezando a nicho de onde fugiu um dos burocratas nascidos da explosão demográfica de santidade, cujo epicentro se situa no Vaticano.) E a pintura canhestra de cenário mais doce para os factos, ambos sabemos como dependem do contexto.
Alucinei-te. Recebendo, no princípio de nós, mail meu. Titilante e desafiador, essa cabecinha ordenada em batalha clandestina com o coração, mais atento à sabedoria epidérmica e menos ao espartilho da geometria racional. Os dedos trémulos, aflorando teclado e desejo, seria injusto crucificá-los pelo deslize. Os minutos de reflexão; as mulheres conhecem os lapsos freudianos desde a eternidade, não precisaram da auto-análise do estóico senhor vienense, que não rejeitou a cigarrilha quando o cancro explodiu, sabia que o amor é um assassino em potência, e no entanto merecedor de grata amnistia.
A decisão. As palavras rápidas, de tão evidentes, a declaração, não de princípios, seguramente de interesses:). O último relance, medroso e aliviado, " que se dane, é verdade, espero que a mereça". Send... As luzes apagadas, o corpo desperto, o sono à espera de uma última interrogação, que ameaça invadir os sonhos - amanhã é mais um dia ou "o" dia?
A minha resposta. O fim do princípio, diria Churchill. A seguir vieram sangue, suor e lágrimas. Mas não só, Maria, não só:).

domingo, dezembro 14, 2008

Domingo.

Maria,

O baptizado correu bem. Um frio de rachar, tiveram de aquecer a água para o pimpolho:). A satisfação de reencontrar o Padre Baptista em forma. Leitura escolhida - o famoso "Deixai vir a mim as criancinhas". O vício da associação livre e as Confissões de Santo Agostinho pelas tortuosas veredas do meu espírito. A opinião pouco lisonjeira sobre os mesmos putos e a sua alegada inocência, não passariam de adultos em miniatura, com os defeitos inerentes. A triste interpretação da frase de Jesus... Lembras-te do que uma vez contei? Um padre amigo, mente brilhante, sorriso amarelado nos lábios - "Santo Agostinho fez-nos muito mal:(". E eu, que o li menos do que devia, arrisco dizer que a luta contra os seus demónios era titânica e infectou-lhe a visão de Deus, Paraíso e Mundo.
Pronto, já me calei. Imagino-te, severa, a corrigir-me, do alto da Fé que não partilho. Pronto, já me calei. Mas não, caramba!, ainda deixo uma pequena provocação - adoraria ter sido o teu pecado original:).

sexta-feira, dezembro 12, 2008

O beijo que vinha do frio.

Maria,

A Mãe sobreviveu a outra ida à Urgência. Análises normais, espírito no céu republicano em que o seu amor a espera há anos. É curioso como sempre te escondi o que vos unia. E não falo de traços de personalidade rebuscados ou construídos pelo meu Édipo, ansioso por não deixar vago de realidade o seu lugar. Falo de tiques, ademanes, gestos prosaicos que vos tornam gémeas, como se o papel vegetal da minha adolescência tivesse ressuscitado. O beijo de esquimó, por exemplo. Quando me presenteaste com esse equivalente antropológico - e gelado... - de um honesto, apaixonado e húmido "french kiss" (esta parolice nacional...), fiquei espantado, ela fazia o mesmo! E ria do meu incómodo, nunca lera Freud ou Lacan, e do Vaticano apreciava a Pietà e a fé dos homens. Nunca to disse, mas descia para os teus lábios com um vagar excitado e temeroso, imaginava-te as mãos cravadas no meu peito, o olhar escandalizado e a sua legenda - "como te atreves?". Daí o suspiro de alívio que calava quando a tua boca se abria à maroteira da minha e do seu arauto, esta língua que tantos com menos direito do que tu decretaram afiada e intrometida:). Tu não, limitavas-te (?) a acolhê-la e a despir-lhe a paixão do frenesim. Até me afastares o rosto para melhor o ver. E sorridente me desafiares para o degrau seguinte, "vem".

segunda-feira, dezembro 08, 2008

Baiona.

Maria,

Regressei a Baiona depois de longa ausência. Sou suspeito, quem resiste a confirmar profecias próprias?, mas quase rosnei ao espelho, "eu tinha avisado...". A sombra do Pierre por todo o lado: ancoradouro, Jaquevi, Mosquito, a marginal. Os olhos azuis risonhos, o branco ruborizado da face, o loiro cabelo nórdico, a barriga desafiante; o abraço de urso. As saudades que tenho dele... Egoísta, vejo-as desaguar nas de ti. O silêncio compreensivo; a mão pelos meus cabelos; o braço rodeando-me a cintura, e sem alarde ao leme, como te poderia recusar brisa e velas? Esse corpo à flor do meu, numa gentil mas firme avidez. O embaraço que te diverte. E o tropeço nas palavras que o agrava, "deixa-me, chata". O riso de quem despe a ordem e abraça o apelo - "Nem penses". Nem pensar... Fazer-te a vontade, Maria, e apenas sentir. Ainda e sempre as saudades do Pierre, mas sobre o pano de fundo do desejo de ti.

terça-feira, dezembro 02, 2008

A neve.

Maria,

A Casa do Vale coberta de neve como nunca a vira. Ainda mal refeito do encantamento, já a grossa chuva branca recomeçava a tombar. E com ela ramos no caminho, a "viagem" até à estrada principal devolveu-me à atmosfera das aventuras dos Cinco:). Depois chegaram os miúdos, numa algazarra de feliz surpresa que contagiou a cadela, sempre mais sociável com eles, sabe-se lá os adultos que conheceu... Vê-los partir foi doloroso, a casa mergulhou num sossego diferente do que os acolhera; melancólico. Na manhã seguinte, o sol. Que derreteu a neve, excepto nos recantos a coberto das árvores mais agasalhadas. E num local de todo improvável, solitário no meio do terreno, sem creme ou sombra a protegê-lo do calor friorento do meio-dia - o tecto da casinha dos miúdos, à janela da qual o Tiago me vende hamburgers imaginados a preços de usurário empedernido. Imaginei-te o sorriso indulgente, perante a minha dúvida "científica" - pensar com o coração, dizias, pensar com o coração e sentir, para depois compreender. Pedi ajuda à tua fotografia, essa procuradora da ausência. Tinhas razão, querida, o erro era meu e do mundo a preto e branco que abrigo e me abriga. E tu colorias, quando... Deixa, voltemos à neve, que resistia à lógica, aristotélica ou outra. Porque nada tinha contra o sol, mas ainda guardava - e preferia! - a esperança de toda se derreter à carícia do extraordinário calor vital dos miúdos regressados:).