quarta-feira, setembro 17, 2014

À sombra de Montalbán.

Maria,
Ao fundo dos nossos túneis - com sorte... - há pessoas luminosas.
O famoso barbeiro era no Liceo às 17, fiz um esforço titânico para organizar o dia. Às dez e meia estava no Refugi 307. Eu e mais seis ou sete desperados, a jovem guia perguntou-nos como tínhamos descoberto o sítio, aparentemente grande parte dos habitantes de Barcelona nunca ouviram falar dele. Os livros têm destas coisas... A miúda não o fazia pelo dinheiro, Deus a abençoe, guardava memórias que não lhe pertenciam. Um silêncio respeitoso emoldurando a sua voz: a enfermaria que não tinha médicos, enfermeiros ou espaço; a fonte abençoada; o túnel sinuoso para evitar que eventuais estilhaços tivessem o trajecto escancarado para despedaçar mais corpos; a sala para as crianças que abateu antes de ser usada; a humidade, vestindo as paredes. No pior dos bombardeamentos ficaram lá três dias seguidos... Enquanto os caças de Mussolini pintavam a sua Guernica, "viva la muerte". Saí de lá a sentir-me culpado por coisas que não fiz, como se o horror, democrático, irmanasse algozes e vítimas; filhos e pais; republicanos e franquistas. Valeram as histórias do meu Velho, puxaram-me do nevoeiro para a chaveta "eles e nós", as suas palavras asseguravam que tínhamos Dios de nuestro lado. Saí dos túneis e havia luz, mas não pessoas, perdão!, havia uma - a miúda agradeceu-nos, pediu para contarmos a outros e não aceitou dinheiro; havia uma.
Voltei ao hotel, não foi difícil ficar menos mal vestido. Da recepção confirmaram a reserva. Para as 15, spanish style. E eu lá fui. De peito feito, entro e digo que venho da parte de Pepe Carvalho, "como o que me servirem". Acabei a dizer que tinham telefonado do hotel 1898. A mesa do canto. E na parede o pai de Pepe Carvalho mirou-me com desprezo, Montalbán fazia de Cristo e eu de Pedro, "vais-me negar três vezes antes da sobremesa".
A matriarca e um olhar de benévola Inquisição. Uma palavra ao chefe, que consultou o livro. Eu levantei-me, ela virou-se, encontrámo-nos a meio caminho, o sorriso aberto, "bienvenido señor Ferrêra". Recordara a face e juntara-lhe o nome fornecido pelo hotel, coisa rara, geralmente privilegiam o Machado.
Outra pessoa ao fundo dos meus túneis, Maria.
De novo me falou do marido lusitano, toureiro e morto, eu escutei pela primeira vez, era o mínimo que podia fazer. E no fim da refeição abracei-a e murmurei-lhe ao ouvido o maior elogio que me ocorreu, "Montalbán tinha razão". À saída o olhar da fotografia era mais suave, por um momento pensei que deixaria a parede e ocuparia a mesa favorita. Ela gritaria para cozinha e empregados, todos se precipitariam para Manolo, alegadamente morto em aerogare longínqua, mas ressuscitado e cheio de fome, talvez me deixassem ficar e assistir a um dos festins de Pepe Carvalho, o detective galego amante de Barcelona criado por Montalbán.
Outra pessoa ao fundo dos meus túneis, Maria, nunca deixei que a morte mas roubasse, se não posso evitar a escuridão, posso, pelo menos, escolher as luzes que realça, como diria o Vergílio Ferreira. E mantê-las vivas, quando em tantos corações assisados e realistas se vão apagando, talvez inúteis por selados os túneis.
Por que sobrevivem os meus?
A música no Liceo fez-me pensar numa resposta - porque são as únicas passagens para a outra margem, com licença dos Jafumega.
Dorme bem.

9 comentários:

Rosário disse...

Por que é uma pessoa de afetos...

andorinha disse...


Belíssimo texto!

Saboreio aqui também...
Já lhe respondi por que razão sobrevivem, não vou responder de
novo:)))

Cê_Tê ;) disse...

[Contornando....Gernika, é o título de uma animação premiada de vários criativos com duração de 13 minutos
que documenta o bombardeamento de
Guernica montando a obraprima de Picasso. Vale a pena ver.]
CT

rainbow disse...


"A ponte é uma passagem para a outra margem"



O primeiro dia do resto das nossas vidas, versão J.I., primeiras impressões:

Um menino de cinco aninhos apareceu com a cara cheia de borbulhas. Pensámos que fosse varicela, mas não.
Resolveu fazer a barba com a espuma de barbear do pai. Diagnóstico clínico: uma imensa alergia. E assim começa Setembro...:)


Bons sonhos para todos
e uma música:


https://www.youtube.com/watch?v=cXvuXENJ--w

bea disse...

Há pessoas que nos iluminam a vida, estão e fosforecem. Algumas sabem-no, outras intuem, mas tanta vez nos são luz e água em deserto sem que o sonhem sequer. E é isto tão bonito como a carta do professor, já que as luzes de que fala desconhecem o lugar que ocupam, mas são luz na mesma. Para brilhar só precisam da sua memória:), conquistou-as à morte. Mas túneis selados deixam de ser caminho, não acredito. É preferível sobreviver; realistas e assisados vivem miudinho demais se forem só isso.

Agora vou ouvir a música da Rain antes de cair para o lado:)

bea disse...

e desculpem, esqueci-me de recomendar o filme "Os Maias".

andorinha disse...


Rainbow,

Também a ouvir Ivan Lins antes de cair para o lado:))))


Bea,

"...realistas e assisados vivem miudinho demais se forem só isso."

Sem dúvida!

Vou ver Os Mais no dia 5. Vai estar aqui no Cineclube.

Vi no domingo o último de Woody Allen, Magia ao Luar.

Gostei, sem exageros.

Bons sonhos:)

bea disse...

Magia ao Luar é o meu próximo; nas sessões a que assisto há uma data de reformados em grupo, afinal, na capital, também se fazem excursões ao cinema. É muito engraçado: a maioria são mulheres, provavelmente com netos porque chegam cedo, sentam-se e puxam dos telemóveis que logo começam a brilhar e várias cabeças debruçadas ora para um ora para outro lado, a cochichar pequeno; imagino que mostrem umas às outras os rebentos. E estão nisto até ao início do filme. Vantagem: não há barulho de pipocas; desvantagem: no final tens de assistir tudinho, os adereços, a equipa técnica, tudo. Porque elas não se levantam antes:) Porém, a vantagem do silêncio sobrepõe largamente qualquer ninharia.

andorinha disse...



:)))))