quarta-feira, setembro 12, 2012

Até aos poetas...


Os amantes sem dinheiro

 

Tinham o rosto aberto a quem passava.
Tinham lendas e mitos
e frio no coração.
Tinham jardins onde a lua passeava
de mãos dadas com a água
e um anjo de pedra por irmão.

Tinham como toda a gente
o milagre de cada dia
escorrendo pelos telhados;
e olhos de oiro.
onde ardiam
os sonhos mais tresmalhados.

Tinham fome e sede como os bichos,
e silêncio
à roda dos seus passos.
Mas a cada gesto
que faziam
um pássaro nascia dos seus dedos
e deslumbrado penetrava nos espaços.

Eugénio de Andrade.

 

Maria,

Os poetas, esses magníficos e preciosos loucos, estão inocentes. Afinal, encontram palavras que comovem espelhos e os fazem reflectir sonhos antigos e não a realidade pura e dura. Nos dois últimos anos, fizeram-me uma pergunta vezes sem conta – pode a crise enferrujar o amor? (Antes também, claro, o pesadelo do fim do mês já atormentava as noites de muita gente quando a Bolsa ainda parecia a árvore das patacas!). Não basta citar Neil Young e dizer que a ferrugem nunca dorme, querida, explico a pessoas assustadas e surpreendidas que “pão, amor e uma cabana” é frase de quem nunca fitou mãos calejadas ou revirou bolsos em busca de uma derradeira moeda.

O amor pode resistir a tudo, mas não indemne ou mesmo escarninho.  Se me pedisses frase popular que descreva as histórias ouvidas,  dar-te-ia o velho “em casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão”. As pessoas sofrem, aguentam, receiam e o amor não vive em neurónios à prova de angústia. De acordo, muitas vezes as agruras da vida juntam mais o casal. De acordo, uma relação que já exibia – ou escondia… - fissuras é mais frágil. Mas negar a influência do torno cruel que espreme o quotidiano das gentes sobre os afectos seria ingénuo.

A visão do amor como algo de etéreo, imune às rasteiras do mundo, pertence ao discurso de uma minoria social privilegiada. (E digo discurso porque a vejo também na prática tropeçar, a conta no banco nada pode contra determinadas catástrofes bem pouco naturais. Mas se o dinheiro não dá felicidade, pelo menos evita preocupações básicas…). Sim, a crise facilita que a ferrugem namore muitos amores. E as pessoas murmuram que dói. É verdade. De uma forma ou de outra, mais dia menos dia, com crise ou sem ela, acontece a todos.

Até aos poetas!

 

22 comentários:

Impio Blasfemo disse...

"A visão do amor como algo de etéreo, imune às rasteiras do mundo, pertence ao discurso de uma minoria social privilegiada. (E digo discurso porque a vejo também na prática tropeçar, a conta no banco nada pode contra determinadas catástrofes bem pouco naturais"
Deixo algo relacionado com aquilo que o nosso PM nos aconselha, ser emigrantes e sair da "nossa zona de conforto", como ele diz. Pena que não aplique a sua visão a ele próprio e que emigre para bem longe levando consigo um bom punhado de amigo seus. E se se der bem, pois que chame os restantes.

Les émigrants Charles Aznavour
Comment crois-tu qu'ils sont venus?
Ils sont venus, les poches vides et les mains nues
Pour travailler à tours de bras
Et défricher un sol ingrat
Comment crois-tu qu'ils sont restés?
Ils sont restés, en trimant comme des damnés
Sans avoir à lever les yeux
Pour se sentir tout près de Dieu
Ils ont vois-tu, plein de ferveur et de vertu
Bâti un temple à temps perdu
Comment crois-tu qu'ils ont tenu?
Ils ont tenu, en étant croyants et têtus
Déterminés pour leurs enfants
À faire un monde différent
Les émigrants
Comment crois-tu qu'ils ont mangé?
Ils ont mangé, cette sacré vache enragée
Qui vous achève ou vous rend fort
Soit qu'on en crève ou qu'on s'en sort
Comment crois-tu qu'ils ont aimé?
Ils ont aimé, en bénissant leur premier né
En qui se mélangeait leurs sangs
Leurs traditions et leurs accents
Ils ont bientôt, créé un univers nouveau
Sans holocauste et sans ghettos
Comment crois-tu qu'ils ont gagné?
Ils ont gagné, quand il a fallu désigner
Des hommes qui avaient du cran
Ils étaient tous au premier rang
Les émigrants
Comment crois-tu qu'ils ont souffert?
Ils ont souffert, certains en décrivant l'enfer
Avec la plume ou le pinceau
Ça nous a valu Picasso
Comment crois-tu qu'ils ont lutté?
Ils ont lutté, en ayant l'amour du métier
Jusqu'à y sacrifier leur vie
Rappelez-vous Marie Curie
Avec leurs mains
Ils ont travaillé pour demain
Servant d'exemple au genre humain
Comment crois-tu qu'ils ont fini?
Ils ont fini, laissant un peu de leur génie
Dans ce que l'homme a de tous temps
Fait de plus beau fait de plus grand
Les émigrants


http://www.vagalume.com.br/charles-aznavour/les-emigrants.html#ixzz26HPrQzTd

rainbow disse...


Boa noite:)

Muito bonito o poema e a carta à Maria.
E tão lúcido o provérbio.
Mas o amor,embora não imune às rasteiras do mundo, se sólido, consegue resistir às adversidades.
Mesmo doendo.
E os poetas, esses, são sempre inocentes.

Caidê disse...

Querem mais falta de patriotismo do que dizer a um português que se quer sobreviver deixe o seu país?

O conselho é imoral:
- é como quem diz que não há projeto para o coletivo nacional e é como quem recomenda que a filosofia de uma nação passe a ser a de "cada um por si";

-é como quem diz que não há país para o qual valha a pena alguém querer garantir um futuro - evacuando-o das gentes mais válidas para o coletivo, fica terra, areal, rocha e pó, onde antes havia um país com fronteiras das mais antigas da História da Europa.

É preciso ter muito pouco patriotismo, muito pouco amor à sua pátria, para a querer ver vazia de vida, e morta para a História.

É precisa muita inconsciência pessoal e é preciso muito analfabetismo político para dizer algo assim...

Quando não se está vinculado às suas palavras apenas como cidadão singular, mas, antes, se está vinculado a elas como Primeiro Ministro do Estado dessa Nação, tais palavras assumem que não lhes importa as pessoas do seu país, as famílias do seu país, nem o seu país, o seu passado,o seu rumo histórico.

Afinal, tal significa que, do território e da população do seu país, o chefe do governo diz não querer saber.

E, se a isto eu chamo falta de patriotismo, pergunto, consequentemente, se é este governante digno de cantar o Hino deste país ou de ver erguer a sua bandeira.

E quanto ao 3º símbolo da nossa nação – a moeda – ele parece responder-nos que um país depauperado perdeu já toda a sua moeda.

E é como se nos quisesse fazer entender que um país assim já perdeu a dignidade e os nacionais a perderam na mesmíssima enxurrada.

Depois destes temporais precisamos de bonanças.

Estou convicta de que lá chegaremos.

Cê_Tê ;) disse...


Malditos poetas!!! :)

Quando encontrar algum vou-lhe oferecer um cravo vermelho e desenhar-lhe na palma da mão uma gaivota
.



[E eu que por razões não confessáveis não gostava do poeta Eugénio de Andrade vejo-me a gosta... ;/ ]

andorinha disse...

Belo poema!
Felizmente existem magníficos e preciosos loucos!:)

Da carta também gostei. Gosto sempre que escreve à Maria.

"Mas negar a influência do torno cruel que espreme o quotidiano das gentes sobre os afectos seria ingénuo."

Seria...

Caidê disse...

CêTê

Faz isso - um cravo vermelho e uma gaivota na mão!

Eu...se algum poeta me vier ao caminho hei de querer pôr-lhe um Sol no coração. Não por falta de ele ver o cravo vermelho ou a gaivota, mas porque pode já tiritar de frio.



Se ele quiser, o poeta, com ele trilharei as veredas da utopia, que é o caminho para o moinho que faz o pão, que permite a canção.

http://www.youtube.com/watch?v=A_fRemms0uY&feature=related



Caidê disse...

Para quem não viu esta indignação:
http://expresso.sapo.pt/os-30-segundos-de-indignacao-de-helena-roseta-na-sic-noticias=f752850

andorinha disse...

Caidê,

Não vi...:(
Obrigada. São vozes destas que me vão dando ânimo.

Se ele e tu quiserem, trilharei também essas veredas.

Caidê disse...

Andorinha

Todos seremos suficientes e necessários.

Vozes como a tua também me vão dando ânimo. Grande abraço!

Bartolomeu disse...

Este é - sem dúvida - de todos os textos publicados no "Murcon", aquele que mais prazer me deu ler.
E reler.
E reflectir sobre ele.
Um ganda like, Professor!
Hoje, mais do que nunca, sinto-me "obrigado" a usar o título académico para me dirigir ao Senhor, PROFESSOR!
Obrigado!

bea disse...

Olha o Bart!!! Viva. dá cá mais cinco. Bem aparecido sejas.

"Os amantes sem dinheiro" me parece uma elegia à poesia que sobrevive em inóspitos lugares. E apesar do professor. ou contra ele. Estou com o Eugénio (jamais ele pensou que alguma mulher o perseguiria tão ferozmente; desculpa, Eugénio, mas é mais forte que eu; fico quieta, não mexo um dedinho, não incomodo, só olho. e não me podes impedir de sentir; fica bem).

É preciso resistir criando as asas necessárias ao tempo que se vive. Porque a realidade existe sempre, mas a poesia só se quisermos. ou tivermos alma para isso.

E o amor? também só se quisermos.

quando a necessidade depende da liberdade, torna-se mais necessária.

Abraço todos

Anónimo disse...

piu!

A Menina da Lua disse...

Professor muito obrigada pela partilha. Isto é o chamado dois em um:) Por um lado as magníficas palavras do Eugénio por outro os seus esclarecimentos à Maria.:)

Na poesia as palavras têm assim outra dimensão; elas ganham vida! que nos iluminam pensamentos e nos enchem corações...
Os poetas sabem escolher sim as tais palavras que tocam, nos levam aos sonhos e que nos alimentam a alma e a vida...

Quanto ao amor e uma cabana, ele é possível sim mas!.......E o professor já explicou tudo!:)

Contudo pior ainda é viver numa cabana sem amor...

Bartolomeu

Tambem me emocionei e consolei imenso.... ao ler o poema, tanto mais que ainda não o conhecia. É bem especial mesmo!:)

A Menina da Lua disse...


Já agora e em linguagem Face:) Vou levar o poema!:)

bea disse...

Senhor professor

não simpatizo muito com a palavra querida; corriqueira e decalcada. Insincera, na grande maioria das aplicações. Contudo, escrita a Maria, assenta. Uma ponta de doçura a descoberto.

Sim , sim, o professor traçou a regra que faz o ditado. Mas, perdoe a minha crença, ainda há os pássaros a subir na respiração dos amantes. E sempre.

Ou a morte desce sobre nós.



Cidade

"Meti-me por setembro fora, a caminho do fulgor das maçãs, deixando para trás os bruscos golfos da tristeza e uma luz de neve quebrada de vidraça em vidraça.
Contemplava a cidade das pontes pela ultima vez, envolvida por lençois encardidos e uma névoa que lhe subia do rio para lhe morder o coração de pedra.
Era um burgo pobre, sujo, reles até - mas gostaria tanto de lhe pôr um diadema na cabeça."

Eugénio de Andrade

ai quem me desenha uma gaivota na mão, que não tenho mesmo jeitinho nenhum.



bea disse...

Cycle

piaste para dizer que tou com os copos ou só por desporto? Ou és ave. ó pá desculpa, não sabia.

Anónimo disse...

bea,
falava com o Júlio...
mas fizeste-me descorbrir que afinal tenho uma costela americana - ora vê

http://pt.wikipedia.org/wiki/Beija-flor

Anónimo disse...

É o efeito secundário de alguma vez termos existido!

Impio Blasfemo disse...

FRASE DO DIA

“ se a indignação ainda não é maior que a tua inércia, se dia 15 ficares em casa, então toma cuidado, toma muito cuidado, é que podes estar morto e não sabes!”

Caidê disse...

Ímpio
Não te perdes, MESMO!
E Halleluiah!

bea disse...

Ai, eu fico em casa mas não tou morta. Mau Maria!

Cycle

o beija flor...que nostalgia. E de repente me vêm uns versos à memória e tanto me visitam sem que saiba o autor ou tal me importe "sabe-me a sonho estar aqui de olhos fechados pensando em ti...". Pensar em alguém ou em alguma coisa, não o diz o poeta, mas é sempre estar de olhos fechados para tudo o resto.

Lusco_fusco disse...

"Sim, a crise facilita que a ferrugem namore muitos amores"

O poema lindíssimo e esse miminho à Maria cheio de imagens sugestivas são prova de como, na esperança de que..., a nossa imaginação pode minar a crise.
Porque não começar pelos que a gerem, a dividem (dela se abstendo e aos "seus"), os que a encapotam ou se encapotam nela. Hum?...
Num celeiro onde os ratos grassam...
1ª - "Pestnix - Desratização - Controlo de pragas em todo o pais" sem querer fazer publicidade.
Tudo de bom