domingo, novembro 30, 2008

Bloqueado pela neve em Cantelães, chega uma velharia pel Net:).

Que há-de ser de nós
Júlio Machado Vaz, Novembro 1991

Como todos os que passaram pelo divã, recebo as coincidências com grunhidos de suspeita. Entendamo-nos: a Alda de Sousa (que me pediu a prosa) parece-me inocente, a culpa, existindo, só pode refugiar-se algures do meu pescoço para cima. Porque lá estranho é, um tipo senta-se para escrever um artigo sobre Sexualidade e repara que faz 41 anos e pôs no Compacto o "Que há-de ser de nós" do Sérgio Godinho. Cheira a esturro. Não se trata da sensação de envelhecimento, mas precisamente da sua ausência, a cada aniversário verifico ser mais radical o divórcio entre ácido úrico e colesterol por um lado e a cabeça por outro. Aqueles, paulatinos, sobem para valores respeitáveis, fronteiriços, de meia-idade; ela peca por arrogância e vive fora do tempo. À espera.
Existem razões para isso, o bilhete de identidade não traduz o percurso único de um ser homogéneo, como podem ser três da tarde na profissão e dez da manhã na Sexualidade?
Não falo de sexo, esse é um velho companheiro de sonhos apetitosos e camas desfeitas, espreitando por cima do ombro maroto do desejo. Estimo-o muito. Deus e/ou a testosterona permitam que não se canse das minhas birras e vá habitar alguém menos insuportável, mas os anos corroeram o triângulo. Eu, o Desejo e o Sexo, era tudo tão simples! Na cabeça, claro, só adultos esquecidos falam de adolescência cor de rosa, mas quando penso em mim há vinte e cinco anos lembro-me das boas livrarias—uma prateleira para cada tema. Assim era eu. Amor, Felicidade e Justiça, as grandes palavras que nos tornam infelizes, escrevia Joyce. O sexo, com letra pequena por força de uma educação conservadora tanto mais eficaz quanto sugerida e não imposta, o sexo, dizia eu, baloiçava entre amores verdadeiros, logo justificativos, e outros falsos, falsos, mas que passavam por idóneos, não fosse a ideia do prazer pelo prazer aflorar à superfície.

Procurar a intimidade
E depois um tipo cresce ou simplesmente envelhece. Um orgasmo é um orgasmo e já não chega, as fronteiras entre Paixão, Amor e Ternura vão-se esbatendo, a ligação erótica recusa as grades da cama ou dos bancos de trás dos automóveis e invade a sala, reclamando livros conversados ou discos velhos ouvidos por entre candeeiros mortos; a gente fica assim, cúmplice, espreitando as pessoas do prédio em frente, a vida em contraluz. Ganapos que se recusam a açoites merecidos, jantares aquecidos por atrasados, estiradores vazios de inspiração, um ou outro afago mais brejeiro, quem nos imagina aqui no escuro, à espreita? A armadilha es«á pronta, mas não para eles. Para nós.
Na realidade, de supetão ou laboriosamente ao longo dos anos, vão-se abrindo portas e olhos, deslizou-se da paixão pelo outro e pelo amor para a busca de algo bem mais megalómano – a intimidade. Também no sexo, como é evidente. O antes e o depois recusam a tirania do durante e as fantasias eróticas de um tacteiam as do outro, porque não existe pior vergonha que a de não explorar o amor com alguém de quem se gosta. Que não chega, resmunga o diabito que se nos enrosca nas entranhas. Pronto a admitir que a felicidade não existe, reivindica fascínios subtis que resistam ao quotidiano, a esses computadores, bichas e panelas que subtilmente vão empurrando o amor para o sábado à noite.

Recomeçar ao microfone
E contudo, nem sempre é fácil acreditar que a vida começa aos quarenta. Falta-nos a disponibilidade, tão preocupados estamos em sobreviver, espremidos entre uma geração que enfrenta a morte e outra morta por viver. Nessa agitação frenética, as pausas, nossas, parecem quase inacreditáveis, culpadas.
«O Sexo dos Anjos» tornou-se, para mim, num desses momentos em que, como diz Woody Allen, consigo por um breve instante focar a Vida.
Impossível, dir-me-ão, como se pode retomar o fôlego em associação livre com um público do outro lado do microfone? Parece estranho, eu sei. No início havia tensão no ar, a ideia tinha sido do Aurélio e preocupava-me a hipótese de o deixar ficar mal. Depois vieram as cartas e os telefonemas e eu comecei a fazer menos chavetas e a deixar-me ir. Às vezes arrependo-me quando ouço o programa, noto as repetições, os fios soltos, as oportunidades falhadas. Para falar com franqueza não me arrependo... arrepio-me! Mas o «Sexo dos Anjos» não pretende ser uma sucessão de aulas, mas de conversas sobre isto e aquilo, até Sexualidade. Hoje em dia entro no estúdio quase com alívio e arrisco-me a dizer que o Aurélio e o Zé Gabriel também, somos amigos. O público... quando se passa muitos anos na clínica quase se pensa que o nosso mundo ficou aprisionado entre quatro paredes, por isso o programa foi uma lufada de ar fresco. As pessoas sugerem, perguntam, criticam e um tipo sente-se vivo, em movimento. Em questão também. Por vezes dizem que me exponho demasiado e eu sorrio; a opinião dos outros interessa-me, mas não me assusta (vantagens da idade). É em mim que está o perigo.
Só a gravação dura uma hora, a cabeça está-se nas tintas para noticiários e compromissos comerciais, a associação livre tem o mau hábito de nos conduzir a temas presos, enrolados na garganta. Que há-de ser de nós? Os versos do Sérgio, estes sobretudo, fascinam-me. Ansiar corpos ausentes, o mais longo beijo, o fogo e a chuva na voz... quem dá aos poetas o direito de tratar por tu o amor? E assim, muitas vezes, abro a porta da Rádio Nova fechado para balanço, sentindo que o tempo foge enquanto falo do amor dos outros.

Ir à ribeira
Receio que não seja este o tom adequado para um jornal como o COMBATE, mas Ferré disse um dia que a revolução na cabeça deveria, obrigatoriamente, preceder a da rua. Sou um burguês típico - o meu (pequeno) ardor revolucionário não sobreviveu à Universidade. Na minha profissão, ao menor descuido, esquece-se a Sociedade e raramente se ultrapassa o nível do casal ou da família. Em Sexologia, não perguntando, quase nunca distingo um tipo de direita de um de esquerda, um religioso de um ateu. Ouço-os. E os lutos por fazer sucedem-se a ódios temporários, a falta de desejo disfarça-se de enxaqueca, choro e riso sacodem os mesmos ombros. Aqui e ali, por competência ou sorte (e que me importa?), as coisas correm bem e faz-se de novo luz em olhos baços. Porta fechada, o cliente seguinte atrasado, perco-me através da janela no cinzento do meu Porto. Que é também o do Sérgio. Estarei velho ou sábio? Ajudo os outros a viver ou sobrevivo através deles? Há quanto tempo não vou à Ribeira ao fim da tarde, não-sozinho, mas fascinado por um riso?
Coincidências. Muitas. O Compacto programado para repetir a mesma música até à (minha) exaustão, a zaragata dos miúdos ao telefone gritando feliz aniversário, o PARA SEMPRE do Vergílio brilhando negro entre os Kunderas vestidos de branco sujo, o silêncio que paira para lá da voz do Sérgio. Que há-de ser de nós?

19 comentários:

EVISTA disse...

Caro Doutor

Não me diga que está mesmo bloqueado!
Mas... não desespere! E sobretudo não entre em pânico ouvindo o Sérgio a cantar "O que há-de ser de nós".
Os seus vizinhos poveiros de Cantelães (Casa da Ponte de S. Pedro) também estão cá em cima. Em último caso ligue-nos (253646708). Nós pomos a lancha poveira à água, rumamos Ribeira do Turio acima e resgatamos presentes e ausentes. O que são os perigos da serra comparados com os perigos do mar?
Um abraço grande, Doutor.
P.S.:Já fica com o nosso número de telefone para o prometido jantar na Casa da Ponte de S. Pedro

Julio Machado Vaz disse...

casa:),

Estava a brincar, tive de afastar uns troncos mas deu para ir às compras e aos jornais! Depois..., preguiça!

CêTê disse...

Queria deixar um comentário mas não consigo...

Não sei bem porquê.

Boa noite.

cabecinhapensadora disse...

Feliz de quem pode perguntar,
"Que há-de ser de nós". Certeza do "Nós". Que existe e há. Depois? é o que ainda não há. Desse, nada se sabe.
A intimidade é sermos capazes de tomar banho num sorriso.E nele nos sentirmos lavados. E não sei porquê lembram-me uns versos acerca dos paineis de S. Vicente "quem pôs assim os homens frente a frente..." ali estão, postos na sua inteireza; mas sem intimidade.

andorinha disse...

Abençoado bloqueio:)

É para mim sempre um enorme prazer saborear estas velharias. Esta nem sequer conhecia...e estou a saborear aos pedacinhos depois de um dia inteiro só dedicado à leitura e à preguicite.
Já sentia falta de um dia assim:)))

Mas vamos ao que interessa. Havia aqui tanto para dizer, mas para já vou apenas pegar em duas 'coisinhas':)

"...porque não existe pior vergonha que a de não explorar o amor com alguém de quem se gosta."

Uma frase que só 'poderia' ter sido escrita por si e com a qual me identifico totalmente.

"Ajudo os outros a viver ou sobrevivo através deles? Há quanto tempo não vou à Ribeira ao fim da tarde, não-sozinho, mas fascinado por um riso?"

Quer mesmo que lhe responda?
Isso é pergunta que se faça?:))))
Ao ajudar os outros a viver está não só a viver, mas a viver de forma ainda mais gratificante.

E não ponha as culpas nos pacientes. Só não vai à Ribeira fascinado por um sorriso se não quiser:))))
Mas deixe-se de queixumes...
Desde 91 de certeza que já lá foi várias vezes na companhia de vários sorrisos:)

Obrigada por este pedacinho.
Fique bem:)

Teófilo M. disse...

Olho novamente o teclado... eu sei que gostaria de dizer qualquer coisa, mas um estranho nó na garganta impede-me de continuar.

91..., foi já há tanto tempo...

Moon disse...

Novembro de 1991...

Estava a comemorar um ano de casamento. Volvidos todos estes, e olhando para mim acho que já não sei bem quem sou...
Por razões legítimas, aos bocadinhos, vai-se abrindo mão disto, abrindo mão daquilo e por fim acabamos a abrir mão de nós próprios.
E é Natal de novo!
"A magia está no ar", dizem...
E eu já não consigo sentir. Não percebo para onde foram os sorrisos que os filhos me exigem, para onde foi o entusiasmo com que os contagiei, para onde foi a minha paixão pela vida e pelas coisas simples.
Agora ando a reboque da deles...
Do canto da sala, vejo-me mecânica a enfeitar a árvore de Natal: uma bola ali, uma estrela acolá... E nem as músicas de Natal que outrora cantarolava com os putos conseguem incendiar o entusiasmo.
Lanço-me um olhar para o canto em busca de aprovação: assim está perfeito? As luzes ficaram bem?
Devolvo-me um sorriso de aprovação. Parte de mim resiste maravilhada pelas cores e pelas luzes do pinheiro. Deixo-a ficar, indiferente ao facto de cá dentro umas quantas lâmpadas terem já fundido... E afasto-me para ir tratar do jantar interrogando-me: o que há-de ser de nós?

:)

A Menina da Lua disse...

O que há-de ser de nós!

É sem dúvida um belo porem perturbador poema do Sérgio que impõe a dúvida no que se refere à questão existencial de quem está como o Professor diz entre "uma geração que enfrenta a morte e outra morta por viver" ou seja um pouco a fazer lembrar a crise da meia idade.:)

E por vezes fica-se no impasse entre o peso da lucidez e a vontade do sonho...

Pessoalmente reconheço-me na sorte de estar na vida com um brilhozinho nos olhos:) e por isso para mim sonhar vale naturalmente a pena!...
No fundo trata-se da procura dos tais equilíbrios que nos possam ajudar talvez a contrariar a insistente insustentável leveza de ser, onde o tempo esse grande escultor (como dizia a Marguerite) se distribuiu assim na dinâmica entre a realidade e a ficção e onde a esperança nos acalenta a vontade de estar...

E depois? E depois o momento é este, a vida é esta e o paraíso aqui...não os saboreemos bem não e veremos então o que nos acontece:)

Olhar disse...

Moon 7.35 PM

Hmm...,

Pois.
Este ano..., a mim,
não me apetece
Natal.:(

CrisTina disse...

"não existe pior vergonha do que a de não explorar o amor com alguém de quem se gosta", verdade! É sempre tempo de o explorar nos "intas" e nos "entas". Nunca é tarde,o modo de o fazer é que pode ser diferente. Mas, desde que se goste, o que importa?

Nuno Guimas disse...

Talvez devesse nevar mais vezes? :)

MS disse...

Há muito não o via a escrever tão longamente! Talvez a neve?!

Duas referências comuns: Woody Allen [fez hoje anos] e 'Para Sempre' de Vergílio Ferreira!

Os Kundera ao lado de Vergílio... distantes na profundidade, apesar de temas comuns de alguns escritos!

GS disse...

Mais um concerto na Casa da Música... desta vez, Pinho Vargas!

Já tenho saudades de o ouvir ao vivo! Espero que não se tenha afastado muito daquele seu tom intimista!

Su disse...

li reli............perdi.me no tempo.................no meu.....

jocas maradas

Anónimo disse...

Para Sempre do Virgílio Ferreira... Se fosse possível reduzir todos os livros que li a um “preferido” este seria sem dúvida uma das minhas hipóteses.
Quanto à parte em que diz “E depois um tipo cresce ou simplesmente envelhece. (…) “ Julgo que o que escreveu a seguir tem a ver com a necessidade e com a intensidade com que cada individuo se preenche (ou seja, o que é o Amor para cada um de nós).
Ou então, estou fora do meu tempo (leia-se idade). Quando tiver 40 nem quero pensar!!! :-)
Beijinhos

ana disse...

Moon: «o que há-de ser de nós?», Temos que ser NÓS, e é sempre tempo para isso, não é fácil, mas para Viver temos que nos Ser, sem disfarces, com cara lavada, com cara levantada.

PILAR disse...

Cumpria eu 21 aninhos em 1991, quando "o Sexo dos Anjos" me veio parar às mãos em forma de livro...Foi de longe o melhor dos presentes... Tinha visto "um tipo" a falar umas coisas (na rtp 2)que muito me encantou... e a amiga que melhor me sabia, apanhou no ar a deixa...
Volto a ele às vezes...e recordo com muito carinho aqueles tempos da faculdade onde no intervalo do estudo se debatia um filme, um livro ou o programa semanal do Júlio...
Nesses debates cresci.
Obrigada!

Away disse...

Aceitar. É o aceitar que nos simplifica a vida e que nos permite viver da melhor forma e aproveitar o amor que nos vai surgindo pelo caminho fora. Não cito grandes pensadores, cito o mestre tartaruga, do Panda Kung Fu, que vi no passado fim-de-semana com o meu filhote de 4 anos: o passado é história, o futuro é mistério, o presente é uma dádiva...

pitangamadura disse...

'O que ha-de ser de nos'....
E para quando o 'P.S. - I Love You'???
Hey, promessas sao promessas....
beijitos doces,
MT