quarta-feira, dezembro 04, 2013

O outro silêncio.

Maria,
Deste silêncio tenho medo - não abraça; devora. Não é como o que te sorria quando entravas, chave recusada na mão, em cujos dedos tive de a fechar, escondendo a intimidade por trás do biombo de ajuda fraternal, “só para vires regar as plantas”. Que cresceram, e eu com elas. A princípio o sobressalto – “empregada doméstica que esqueceu o guarda-chuva? ladrão avesso a pé-de-cabra e primo do tio do sobrinho do habilidoso que me arranjou a fechadura e despiu o bolso, “com recibo...?”; alma penada sem auto-confiança para atravessar paredes?”. Eras tu. “Preferia tocar.” E eu menti algumas vezes, até responder sem levantar os olhos do livro, mas encolhendo os ombros, “qual é a diferença?, nos hotéis pedimos duas chaves”. A diferença é abissal. Amo o silêncio da casa, espera-me com a ternura da Michelle, que se limitava a ensaiar um solo de bateria com a cauda e não abandonava o sofá, esperando afago e colo noite dentro; até ser transportada como um bebé para o fundo da cama, onde se enroscava a tiracolo de um suspiro feliz. Não andámos longe disso, tu literalmente, eu nos braços do teu olhar.Mas tu ficavas na outra margem da cama, noite após noite um de nós partia à abordagem e o outro oferecia resistência com tanto de falsa como risonha, “és insaciável”, a frase ia e vinha como bola de ping-pong, eu também dentro de ti. Mas nos intervalos de amor e desejo o silêncio guardava tempo e estatuto e era amigável, sabia que nos unira tanto como os rituais desajeitados de sedução.
Este é diferente, não torna as palavras inúteis, rouba-lhes o significado e, não vá o Amor tecê-las..., estrangula-as. É paulatino, mas irreversível. Depois das palavras seremos nós. Por momentos restará um eco longínquo do que fomos, a sombra de Brel sem o cão, o lado escuro da Lua dos Floyd sem amplificadores, uma caricatura obscena do que vivemos. Não importa quantos os degraus, levam-nos pelos pés às areias movediças deste silêncio que me invade as entranhas. De tão profundo e arcaico, resta-me a esperança de que não conheça as regras aduaneiras da (des)União Europeia. Se assim for, estás a salvo – recusar-lhe-ei passaporte,  ficarás livre dele. E de mim. Capaz de viver a plenos pulmões.        

22 comentários:

andorinha disse...

:)))

Não sei que diga para não incomodar a Bea:)lol

Não consigo exprimir por palavras o impacto que causam em mim estes textos. Por isso digo sempre que fico sem elas, as palavras...
Porque fico.
Leio, releio e saboreio cada pedacinho, cada nuance.

Repito-me: abençoada Maria e abençoado Júlio que assim interage com ela:)

"Mas nos intervalos de amor e desejo o silêncio guardava tempo e estatuto e era amigável, sabia que nos unira tanto como os rituais desajeitados de sedução."

Como é bom este silêncio, Júlio.

Do último parágrafo não gostei tanto,parece-me pessimismo a mais.
Ou é uma concessão ao Impio?:))))))

Fique bem:)

bea disse...

Andorinha!:) era uma prostração, não sei explicar melhor. mas hoje estou quase normal, que só a morte me vai trazer a normalidade absoluta do inanimado. o que quer dizer, quando eu já for outra coisa:) No fundo, no fundo, talvez sejamos todos um bocadinho anormais:) e isso será preferível a sermos outra coisa que é em tudo diferente da mesma coisa.

Senhor Professor

e eu volto a concordar com a andorinha. mais ou menos. Há nos textos-cartas a Maria uma feliz mistura de fantasia e realidade. Ah! o manto diáfano da fantasia, que falta nos faz havê-lo!

Apesar de o encontrar triste, não entendi o alcance do último parágrafo. Mas talvez como sempre digo, não seja para leigos e só para os iniciados:)

E levava a cadela ao colo para a cama?! a sério?! é uma ternura.

não há silêncios ireversíveis senão os dos mortos, ouviu bem, senhor professor? ai, então...afinal é psiquiatra; ora esta...

andorinha disse...

Bea,

"No fundo, no fundo, talvez sejamos todos um bocadinho anormais:)"

Felizmente! Detestaria ser "normal":)

A carta é linda! Estou a ler de novo e continuo "apatetada"...acho que é a palavra que melhor define o estado em que fico:)

Vou...

Fica bem:)

bea disse...

apatetada:)...isso é mais mim.

andorinha disse...


Vês como temos muitas parecenças?:))))))

Cê_Tê ;) disse...

Poeticamente muito bonito. Intimista como sempre. Na vida real os piores silêncios são os que nem sombras criam! As palavras não ditas ou mal ditas nunca se dissolvem com monólogos, por muito poéticos que eles sejam. (Acho eu ...). Precisam de epidermes próximas e longas conversas ... o tempo que duram até um beijo podem fazer avaliar os danos feitos na(s) alma(s) e o tempo de recuperação se ela puder ter lugar.

Bjnhs

Impio Blasfemo disse...

Prof JMV
Gostei do que escreveu e muito desta sua frase “Depois das palavras seremos nós.”. Este é o tal silêncio que é desafiante, dado que depois das palavras teremos de ser nós e a nossas escolhas.

Saravá
IMPIO

andorinha disse...

Cêtê,

Gosto de te ver por aqui, cachopa:)
E gostei do que escreveste.

Beijinho


Impio,

Não entendi assim. Depois das palavras como? Como podemos ser nós e as nossas escolhas sem palavras?
O que é dito é que as palavras são estranguladas de uma forma irreversível e depois seremos nós - "Por momentos restará um eco longínquo do que fomos...uma caricatura obscena do que vivemos."
Sem palavras com significado, o que seremos?

Só vejo aqui pessimismo, não consigo ver mais nada. Ou algo me está a escapar...

Impio Blasfemo disse...

Andorinha
A vantagem do Prof JMV é que escreve de forma poética, eu não tenho essa capacidade, só consigo escrever de forma linear, directa e objectiva. Sou um homem de acção, e penso que as palavras pelas palavras, são um mero exercício de estilo e daí aquele poema “LA POESÍA ES UN ARMA CARGADA DE FUTURO” que no passado post sobre a JUDY GARLAND coloquei e que, a páginas tantas escrevia
“….Maldigo la poesía de quien no toma partido hasta mancharse.
Hago mías las faltas. Siento en mí a cuantos sufren
y canto respirando.
Canto, y canto, y cantando más allá de mis penas
personales, me ensancho.”
E assim, a escrita pela escrita, serve apenas a escrita, ou o próprio que a escreve. Quanto a mim e escrita tem de éter um sentido, e esse tal sentido for colectivo, pois tanto melhor., quanto a mim. E daí que gosto pouco da escrita em circuito fechado, quero dizer, brincando e de forma ligeira, da cabeça para o umbigo e de volta deste para a cabeça.
Como vês, pelo que acabo de escrever, sou um tipo despido de poesia, ou, se quiseres , reescrevendo, de uma certa forma de poesia. Reconheço que isto, provavelmente, não é feitio, mas sim defeito, mas também não pretendo ser um ser perfeito, nem atingir a perfeição; aliás, para te ser totalmente franco, a procura da perfeição é uma coisa que me chateia profundamente!
Adiante; vamos à frase “Depois das palavras seremos nós.”. Pois é fácil de explicar porque gostei. Diria “Depois do discurso resta-nos a acção”. E se assim não for, pois que vale o discurso? Fica vazio? Mesmo quando discursamos em circuito fechado, da cabeça-para .o-umbigo-e-vice-versa que adianta o discurso sem acção consequente? Apenas o exercício dos neurónios? E daí a solidão ou o silêncio/Solidão, aquele tempo que está entre o discurso e a acção consequente. Esse é um momento de solidão, interrogação e decisão. Esse é um tempo em que o nosso “eu” se afirma ou se retrai, esse é um momento de solidão desafiante.

E tentei explicar o melhor que sei.
Abração
IMPIO

bea disse...

http://www.youtube.com/watch?v=LKxIuVRIMgM

Yuja Wang-Schumann Symphonic Etudes Opus 13 part 1 of 2

(não sei o que quer dizer mas é bonito)

bea disse...

não é verdade que o tempo torne caricatura obscena o que foi em verdade, alguma coisa diferente. o tempo deteriora, embacia, doura. não muda a essência.

Ìmpio

o que o professor disse está dito. É com ele; esperando eu que Maria o entenda.

a escrita é uma forma de agir, nunca pensaste? mas pronto, falas talvez de uma certa coerência entre pensar - que é neste caso escrever - e agir.

conheço uma pessoa que gostaria bem de te ler. e que diz que a escrita sobre si mesmo é sentimentalismo romântico a banir do que se possa considerar boa prosa ou verso.

explicaste bem:)

Impio Blasfemo disse...

Bea

Boa noite! Desculpa-me não entrar em diálogo mas estou a corrigir testes. Amanhã respondo. Acho que tens razão, no geral. A escrita pela escrita pode ser uma forma de acção. Mas gostaria de desenvolver este tema. Hoje não tenho tempo; peço desculpa.

Abraço
IMPIO

andorinha disse...

Impio,

Penso ter entendido o teu ponto de vista, embora em relação à carta eu pense de outra forma.

"...aliás, para te ser totalmente franco, a procura da perfeição é uma coisa que me chateia profundamente!"

Também a mim. E é uma perda de tempo porque a perfeição não existe:)

Como diz a Bea,
"...o que o professor disse está dito. É com ele; esperando eu que Maria o entenda."

A Maria entende-o de ginjeira. São muitas cartas...:)))))

A ouvir o que trouxeste. Bonito, sim. Quanto talento!


Uma frase lida por aí e que subscrevo:

"die with memories, not dreams."


andorinha disse...

Impio,


Cá te aguardo também, amanhã:)

Abraço

bea disse...

morreu o meu herói. desprendeu-se. e a morte foi-lhe talvez um bem - descansa nele o guerreiro que foi. que a linha da vida já lhe era rasto breve. mas os heróis refulgem. o imaginário ateia-lhes o fogo sagrado.

um beijinho, Nelson Mandela

Julio Machado Vaz disse...

Meninos, curvemo-nos perante Mandela, a transcendência humana não implica necessariamente o Divino. Quanto às minhas palavras - neste texto a Andorinha tem razão, a visão é apocalíptica, o silêncio matará primeiro as palavras e depois os amantes. Mas também já escrevi outros que seguem a ideia do Ímpio - quando o discurso se cala, começa a acção ou o afecto sem roupagens ou "manobras de diversão". Abraço para vocês, grato pela vossa fidelidade.

andorinha disse...

Bea e Júlio,

"a transcendência humana não implica necessariamente o Divino."

Pois não, Mandela é a prova disso.


Júlio,

Eu tenho razão?
Bem me parecia...
Tal como a Maria, eu já o conheço de ginjeira:)))))))))))


"Abraço para vocês, grato pela vossa fidelidade."

:) Abração

bea disse...

os amigos são fiéis por serem amigos. E pronto. Dá-nos vontade de agradecer a devoção - um amigo é um devoto, sim; muito humanamente, mas devoto - e, no entanto, ela é espontâneo bem querer. Merecê-lo é agradecer.

bom dia a todos

senhor professor!!!!
olhem o que Mandela ainda pode...

andorinha disse...

Bom dia:)

Lindas as tuas palavras, Bea. Como (quase):) sempre.


Já cheira a fds e mais logo vou para a minha galderice:)

Fiquem bem.

Interessada disse...

Abraço fieis e infieis :)
Um bom fim-de-semana.

Interessada disse...

Julio, gostei muito, como habitualmente.
Abraço.

bea disse...

Oh! Compreendi por que razão a Interessada demorou tanto a voltar... andou mudando o visual:))

Bons olhos a vejam