(velharia).
Da serenidade
Trouxe, de mais uma catastrófica visita à FNAC!, as duas Variações Goldberg de Bach por Glenn Gould: de 55 e 81. E vocês – sobretudo os que não deitam nada fora! – invocam artigos em que assumi total cegueira de ouvido e acusam-me, risonhos ou ácidos, de novo-riquismo – “deu-lhe para fingir que percebe de música clássica”. Não percebo. O ouvido continua mais duro que o diamante. E contudo guloso... Porque saboreio intensamente a beleza da música, apesar de não conseguir reproduzir um acorde sem, ofendido, ver a família rebolando-se num choro convulsivo de gargalhadas respeitosas – que talento para assim desafinar! A humilhação pior é a solitária: em diversas situações uma melodia irrompe e eu rosno que a conheço e guardo na estante, paredes-meias com os livros, mas sou incapaz de a baptizar e a quem a compôs. Enfim...
Um texto sublinha as diferenças entre as interpretações. O que me interessou, como se reflectiria o trajecto de vinte e seis anos de vida no teclado? Antes de procurar, triste aluno aplicado e espesso, as nuances que outros notam espontaneamente, uma frase do pianista saltou-me à vista. Dizia ele que “o objectivo da arte não é a libertação de uma momentânea descarga de adrenalina, mas antes a construção, gradual e ao longo de uma vida, de um estado de encantamento e serenidade”. Dei comigo a pensar que talvez o objectivo de arte e vida fosse o mesmo: quando temos sorte - ou a procuramos? -, também a segunda evolui de picos afectivos jamais esquecidos para uma certa acalmia. Cujo sossego não mata à fome as velas da nossa embarcação; a viagem continua.
Reza a crónica que nove anos após a gravação de 55 Gould abandonou os palcos. Devolvendo-lhe a palavra: “A tecnologia tem o poder de criar um clima de anonimato e conceder ao artista o tempo e a liberdade para preparar a sua concepção de uma obra levando ao limite as suas capacidades”. O psiquiatra em mim desconfiou de segundo coelho morto com a mesma cajadada, não seria o homem avesso à angústia provocada por mil olhos atentos nas salas de concerto? Pouco importa, decidiu que precisava de isolamento para extrair o melhor de si próprio e fê-lo. A segunda gravação leva Tim Page, autor do texto, a falar de uma interpretação “profundamente pessoal e contemplativa”. Gould fez cinquenta anos a 25 de Setembro de 1982 e sofreu um acidente vascular fatal a 27. Page diz que tivera a sensação do círculo a fechar-se com a morte de um homem que lhe parecera, na última entrevista, “pronto a metamorfosear-se em puro espírito”. E cita T.S. Eliot: “Não pararemos de explorar/E o fim de toda a nossa exploração/Será chegarmos onde começámos/E conhecer esse lugar pela primeira vez”.
Terá Gould alcançado alguma forma de encantamento e serenidade? Os musicólogos o saberão. Eu, resignado à incapacidade de apreciar devidamente as mais ou menos subtis diferenças de interpretação, pedi boleia e ajuda a música e poema - não será a vida assim, a busca da paz que nos deixe revisitar o passado? Com ternura, mas também com a distância que permite apreciá-lo a salvo das armadilhas de afectos violentos?
Como é óbvio, a parelha Bach/Gould não foi o meu único capricho. No saco, ladrão despudorado com ademanes de inocência baratinha, viajou colectânea magnífica de Pablo Milanés. Uma das canções chama-se “O tempo é implacável”. Nela se fala do tempo, “o implacável, o que passou”, das “recordações que, quando menos se imagina, afloram”, de “marcas impossíveis de apagar”. A serenidade é uma estação de chegada, talvez nunca atingida; seguramente longínqua, apesar do caminho ser breve. Se Gould estava pronto para morrer, não sei. Mas foi capaz de tocar “outras” Variações Goldberg, apoiado no que vivera o rapaz genial de vinte e dois anos para se transformar no homem genial de quarenta e nove. Poliu a obra de juventude sem a amordaçar. E se a vida permitisse o mesmo? Voltaríamos atrás para percorrer outra veredas, guardando na estante – em DVD! – os trambolhões dados na primeira viagem.
Mas para comparar com os da segunda! Porque a vida não apresenta o magnífico rigor de uma partitura de Bach e nós a “tocamos” de ouvido, órfãos de génio e ensaios. Em contrapartida, público não falta...
22 comentários:
www.suggadittu.blogspot.com
Professor...que luxo!
Não lamente o ouvido, o desafino da voz, o nome que não consegue lembrar...o seu canto é este, e desta forma única, lê-lo é ouvi-lo em acordes de serenidade e sabedoria, sensibilidade e entendimento...boa viagem, Professor, numa bolina cerrada, até sempre...e obrigada a si, de mim, que o ouço passar cantando...
boa tarde
realmente a vida sem trambolhões não tem graça nenhuma
e mesmo sabendo isso andamos sempre com medo de cair...
este post fez-me lembrar a conversa da Ana Sousa Dias com o Pedro Burmester no 'Por outro lado', que não voltou a gravar a variações de goldberg por superstição :))
@:)
Vou (re)ler mais logo, agora, com pena, não posso.
Mas que bom o Prof. ter relembrado Bach, que ontem fez 321 anos...
Gratulieren, Herr Johann Sebastian!!!
Bjinhos apressados
Ai a FNAC, de certeza que muita gente tem o mesmo problema: uma delícia para o espírito e um desastre para a bolsa.:)
Pessoalmente, prefiro a versão mais lenta de 81. Há menos diferenças de andamento de uma variação para a outra, o que dá maior unidade à peça. Talvez menos técnica pura e mais expressão, demonstrando o amadurecimento buscado pelo pianista:"o objectivo da arte não é a libertação de uma momentânea descarga de adrenalina, mas antes a construção, gradual e ao longo de uma vida, de um estado de encantamento e serenidade". Possuindo técnica para isso, o frenesim inicial (ficou conhecido por tocar "tudo" num andamento muito rápido) não será de admirar num animal jovem.
Extrapolando a citação, o texto diz o seguinte:"Dei comigo a pensar que talvez o objectivo de arte e vida fosse o mesmo: quando temos sorte - ou a procuramos? -, também a segunda evolui de picos afectivos jamais esquecidos para uma certa acalmia." Sim, mas não marasmo, pensei antes de ler a frase seguinte: "Cujo sossego não mata à fome as velas da nossa embarcação; a viagem continua." Assim juntas, talvez as minhas frases preferidas do texto.
Também gostaria de salientar o final. Realmente temos muitas vezes a nostalgia de "voltar atrás" e viver tudo de novo, mas desta vez com mapa. "Se eu soubesse o que sei hoje" é uma coisa que se ouve frequentemente. O final do texto faz-nos reflectir sobre isto. Será que seria assim tão simples? Aquele: "Mas para os comparar com os da segunda!" é demolidor.:)
(hoje nem tenho tempo de beber o café do costume) Li de corridinha mas gostei do que li (espero que tenha também comprado alguns dvds para miúdos- gosto taaaaaaaaaaaaanto da preguiça da Idade do Gelo, professsssor! (Prometa que vê ;]]]]])´É impossível que não goste. Quem sofre a ver jogo da bola.... Olhe até há um jogo do Benfica no filme (agora me lembro) LOOOOOOOl
Tenho um amigo, muito especial, (não não é desses ;] ) que adora música clássica e sabe tudo tudo tudo sobre filmes e musica que até incomoda. Eu nunca me lembro do nome das coisa?! E faço à custa diso figuras tristes quando procuro "Aquele livro", "Aquele CD" ou "Aquele DVD"
"A humilhação pior é a solitária: em diversas situações uma melodia irrompe e eu rosno que a conheço e guardo na estante, paredes-meias com os livros, mas sou incapaz de a baptizar e a quem a compôs. Enfim..."
Enfim... Eu também não sou capaz de o fazer, nem que ouça a mesma música centos de vezes...
Enfim... Continuarei a ouvir e a saborear as harmonias mesmo sem recordar o nome do compositor...
Um sorriso...
Boa noite.
Gostei de ler, como sempre.:)
"Dei comigo a pensar que talvez o objectivo da arte e da vida fosse o mesmo...evolui de picos afectivos jamais esquecidos para uma certa acalmia."
Nunca tinha feito esta associação, mas faz todo o sentido.
"...não será a vida assim, a busca da paz que nos deixe revisitar o passado? Com ternura, mas também com a distância que permite apreciá-lo a salvo das armadilhas de afectos violentos?"
Na mouche! O passar dos anos traz-nos um certo apaziguamento, concordo,e a distância temporal permite apreciar as coisas na sua verdadeira dimensão. Vamo-nos também pacificando com a vida.
Falo por mim, durante alguns anos eu e a vida estivemos de costas voltadas; de há uns anos para cá conseguimos fazer as pazes.
Alguém:) me disse um dia "não vale a pena amuar com a vida."
Nunca mais me esqueci desta frase!
"A serenidade é uma estação de chegada, talvez nunca atingida..."
Sim, penso que a serenidade absoluta não se consegue.
O último parágrafo é, todo ele, magnífico.
Aqui ficam as impressões de uma primeira leitura.
Mais logo espero ter tempo de reler.:)
Professor que bonito texto!
Gostei mesmo:))
A música e a vida!...para mim estão muito ligadas, ou seja não vivo sem ela, a música...
À medida que vou avançando na idade e sem querer ser original, é com a clássica que consigo atingir níveis mais elevados de satisfação pois existem determinadas peças que me deixam em completa contemplação...
Curiosamente tenho uma atênção especial pelas interpretações, ora se tratem de solistas ou mesmo de orquestas e confesso que as nuances são imensas; pode-se ser um excelente interprete e o resultado ser menor em termos de emoção...
Penso que o gosto musical se educa ou seja, torna-se necessário darmo-nos à descoberta da música e dos músicos, com todas as suas particularidades culturais; procurando compreendê-la lendo o seu sentido e onde o prazer é sem dúvida a melhor parte.
Mas em geral a música é a música...existe nela algo tão delicioso e tocante que nos faz enlevar, sorrir em cumplicidades com o autor e até adormecer por encantamento.
Pamina
A FNAC só é um desastre para a bolsa de quem lá trabalha. Esses não têm escolha.
Que bom... está a passar Carlos Parede! ;]]]]]]]]]]]]]]]]]]]]]]]
"Baque", como diria a Gertrudes, suponho...
I Like! Embora quando digo isto o meu pai, 'viciado' em música clássica -e não só-, me diga que é dos músicos mais repetitivos e menos criativos porque compunha música como imperativo para assegurar o pão para uma família numerosa. Nunca fui confirmar a veracidade desta teoria, nem preciso. Gosto e pronto!
O mesmo acontece com aquilo que escreve. Não costumo procurar explicações, não disseco muito. Saboreio, delicio-me, às vezes apaixono-me outras arrepio-me mas indiferente, nã..., não fico!
P.S. Quanto à reprodução de acordes...
Ando quase sempre a cantarolar. Há pouco tempo ia no carro, com o meu filho mais novo, entusiasmadíssima a cantar uma canção do Prince quando, calmamamente, ele perguntou:
"Gostas muito desta música não gostas?".
E eu acenei que sim.
"Então não estragues, sim?!"
São uns queridos,os filhotes...!
Prof., como diz, a vida não admite ensaios. E eu diria que é um concerto para Cabeça, Coração e Sentidos… e onde temos de aprender a improvisar, porque, até hoje, ainda nenhum compositor escreveu a partitura…
Por isso, sentemo-nos ao teclado da imaginação e ataquemos, ora forte ma non troppo ora piano con dolcezza… Pode não haver palmas no fim, mas isso não é importante, se estivermos conscientes de que tentámos a melhor interpretação possível…
Boa noite.
Música barroca...deliro! Vibro, faço directas a fazer maquetes a ouvir bach.
Tenho um amigo, estudante de música antiga em haia que tem um blog engraçado, visitem-no. www.barroquista.blogspot.com
Quanto ao sentido da vida e da música. O mais importante é traçarmos objectivos e percorrermos caminhos. Se os atingimos ou não, pode ser uma questão de sorte ou azar, é importante sim, mas menos. O caminho é o mais importante. Não é o que se vai fazer, é o que se está a fazer e para quê ou porquê!
Moon
Isso dos filhos gostarem ou não de ouvir a nossa voz depende das idades; por exemplo aos 3 e 4 anos adoram!...mesmo que seja apenas para lhe lermos histórias e pode querer que o conteúdo dela tem menos importância que o som da nossa voz e principalmente o aconchego da nossa aproximidade :)))
Agora o que eles estão atentos e julgo que em todas as idades (mesmo que o não manifestem)é à nossa alegria. Por isso o melhor é continuarmos a cantar apesar de desafinadas...:))))
Opssss!
Mais um erro evidentemente que é crer em vez de querer.
Sorry...
"Em contrapartida, público não falta..."
Adorei a ironia!
Bingo.
É isso mesmo...
Só que a plateia de Gould é de fãs, mesmo que críticos conhecedores.
Ao passo que a nossa (a dos comuns mortais)não é, hélas, feita da mesma massa.
É mais de piranhas (ou então a tal última palavra dos Lusíadas que alguns dizem ser a síntese do povo português...)
Além de não serem fãs (em 99% dos casos) não são sobretudo especialistas na matéria (que nesse caso é a matéria de vida). Mas adoram agir como se fossem...
ERRATA: No seu caso a plateia tem muito mais do que 1% de fãs. É um semi-mortal...Professor! Já viu a sua sorte?
Aspásia,
Gostei da interpretação que fazes da vida; subscrevo-a.
As palmas no fim não são o mais importante, embora o reconhecimento dos outros seja sempre gratificante, mas sim a consciência, como dizes, de termos feito o nosso melhor.
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