Da tristeza normal
“Viver é a coisa menos frequente do mundo
A maior parte das pessoas existe e isso é tudo”.
Joaquim Pessoa.
Os jornais vêm partilhando títulos proféticos e apocalípticos: a depressão estará na moda como nunca em futuro próximo. Olho por cima do ombro. Quando me formei via os depressivos a preto e branco. Não por culpa de professores distraídos ou calhamaços mentirosos, fui posto em guarda - a depressão é mestre no disfarce, utiliza as cores de paleta rica em sintomas psicológicos. E até físicos, imaginem o desplante! Mas um tipo é jovem, estuda primeiro para o exame e só depois para ser médico; as chavetas são fáceis de reter e parecem organizar, para nosso alívio, o caos circundante a que chamamos vida. Armado de tal ingenuidade preguiçosa, dificilmente concedia o diagnóstico de depressão a quem não me presenteasse com determinadas queixas.
A tristeza encabeçava o cortejo. De preferência acompanhada de lágrimas a condizer (as alegres não visitam os psiquiatras!). Como dama de honor procurava a lentidão de espírito e corpo. A que o próprio sente e abomina, por o amarrar ao banco da paragem, incapaz do simples passo que o tornaria passageiro do autocarro da existência. Com ela a auto-imagem comprometida, o dedo acusador que se vira contra o dono, responsabilizando-o por ofensas, erros e azares, “a culpa é tua”. E farejava outros sintomas bem mais prosaicos: a insónia, a falta de apetite, o baixo desejo sexual.
A clínica ensinou-me a frustração e a humildade. Porque havia quem me afiançasse não conhecer tristeza ou lágrima derramada. Outros aceleravam ainda mais vidas já de si alucinantes, ao ouvi-los era eu a sentir-me lento! E o catálogo crescendo. Este comia alarvemente, aquele roncava doze horas por noite, o terceiro (ou terceira!, para ser politicamente correcto) já deitava orgasmos pelos olhos, de tanto os utilizar como medicamentos, não necessariamente depois de cada refeição. Uns pareciam ter sempre carregado aos ombros um peso que não permitia o riso aberto, outros só o tinham perdido na ressaca de um luto ou desgosto amoroso, talvez haja quem nasça para ser triste e quem veja o acaso empalidecer-lhe a alegria. Rendi-me. Esquecido o preto e branco, passei a tentar compreender pessoas tão diversas como as tonalidades de um arco-íris, dançando embora à volta do cinzento.
Nos últimos anos algo vem mudando, dir-se-ia que as gentes sofrem de um desencanto embrutecido. A tristeza era mais prometedora, o negro do túnel promete o céu azul se prosseguirmos o caminho; já o nevoeiro, sem vento amigo, não o conseguimos enxotar. As pessoas exibem – ou escondem? – uma tristeza “vulgarizada”. Que quero dizer? Talvez nada, a asneira é livre, mas parece-me que o desencanto reina sem levantamento popular à vista, considerado inevitável como o stress. Não se acredita verdadeiramente na hipótese de viver melhor, apenas de sobreviver. Amiúde atafulhados em sinais exteriores de riqueza e nem por isso pacificados. Mas não contem comigo para variações sobre o tema “o dinheiro não dá felicidade”. Oferece, pelo menos!, a abençoada possibilidade de lhe esquecer a ditadura mensal, não é coisa pouca. Mas numa sociedade em que o bem-estar depende, primordialmente, do que nos é exterior, seja a grande superfície ou o dealer, a confiança no talento próprio para obter a paz de espírito diminui (evitemos a megalómana palavra felicidade). E surge uma tristeza nova por “normal”, mas também a nostalgia de uma solução mágica, que pode jorrar em concurso televisivo ou nas cartas do astrólogo que nos intervalos promete o paraíso, servido numa bandeja por chamadas de valor acrescentado.
Estaremos condenados a eterno e cinzento nevoeiro? Talvez, a menos que enchamos coração e peito, inventando a brisa colorida que devolverá aos dias clássico diagnóstico – céu muito nublado com boas abertas.
20 comentários:
Prof,
não podia estar mais de acordo.
As suas palavras descrevem bem o que sinto e o que vejo a minha volta.
Muitas pessoas simplesmente não "saltam", deixam se ficar com medo, outras vezes sem precepção, preferem sobreviver na sombra do que viver ao sol.
Esta sociedade que construimos e nos consome.
Abraço
Vendo bem, a que poderia conduzir uma quase generalizada ausência de valores éticos e morais se não a uma sociedade em estado de depressão colectiva ? Até talvez por isso mesmo, nem os que estão atafulhados em sinais exteriores de riqueza conseguem sentir alguma paz...
desencanto
A depressão, a diabetes, a sida: as 3 maioree patologias do séc. XXI, ouço eu já dizer desde os anos 90.
Será?
Quanto à depressão, foi sempre coisa que me horrorizou (=irritou) nos outros, por muito condoída que ficasse. Achava sempre, no fundo, no fundo, que as pessoas não tinham capacidade de lutar e adoravam chamar as atenções.
Mas, passados os verdes anos....
- Algumas pessoas que tinha na qualidade de "guerreiras" lá acabaram atacadas pelo bicho.
- Outras que mal conhecia, igualmente atacadas pelo mal, começaram de repente a aparecer "com legendas" na minha frente,e eu a achar que era o hábito, a moda, que tornava as coisas, supostamente, mais intelegíveis , e não era eu quem mudara.
- Volta e meia, um ou outro episódio meteórico na minha vida, fortuito e atípico, fez-me deslizar por curtos momentos para recantos da "alma" que de todo desconhecia em mim, demonstrando-me uma assustadora fragilidade desconhecida, e afinal um rio bastante mais largo do que escolhera, sempre com o leito ao alcance das margens.
Mas eram fugazes essas perdas de pé...
- Por fim, há 1 terramoto e começo a ouvir a irritante palavra à minha volta.
Numa família de cultura anti-hipocôndrica, sem lugar a "dói-dóis", as vozes da ordem não páram de dizer que O MAL se ataca antes, que se ataca a tempo, que o pior é ignorar e passar ao lado, que por isso eu tinha de....
chei mesmo que todos estavam realmente a perder a sanidade (menos eu).
- Depressão ? Como assim? Eu?!!!! Com insónias galopantes, hiperactividade, "nódoas negras" mas sangue nas veias, os sentidos todos alerta e a querer agarrar tudo nas mãos, "apoderar-me" do mal como como nos apoderamos do bem?
Eu?! Então a depressão não é robe e chinelos, astenia total, cabelo desgrenhado, coqueteria na gaveta e desistência de lutar? Ná....eu estava nos antípodas
Mas bom... para não frustar as boas e doutas intenções da já de si, por minha causa, bem aba(na)nada ancestralidade, lá fui, para a forca, ao psi mais a jeito. Como quando se faz a vontade aos doidos ou às crianças.
Avisando que nem sonhassem que me ia pôr a contar a vidinha, Deus me livre de tal coisa. Ia só buscar as pílulas para (os) acalmar...
Razão tinha eu. Ai pois tinha.
O psi (douta pessoa, e diga-se de passagem que bem simpático) provocou-me tanto, tanto, antes de "aviar" as malditas pílulas, que quando dei por ela já tinha despejado cá para fora meia história, à conta deo desforço. Travei a tempo, horrorizada. Mais tarde lá concluí que o senhor tinha pouco a ver com o meu mal específico. Era médico da caixa dos transistores, sim senhor, mas não era bem o que eu precisava. Este era especialista em ...suicídio! " -Cruzes!", viria a comentar outro colega do suicidólogo, quando me soube naquelas paragens...
safeime de boa. Mas não das pílulas....
Que de resto, como não podia deixar de trabalhar ao ritmo normal e me recusava ameaçadoramente a que me receitassem drogas "caça-quilos", acabaram por ser umas inocentes pílulazinhas, iguaizinhas a umas que podia ter tirado de qualquer gaveta.
Tempo perdido.
É claro que o quadro continua igual, pior aqui e acolá, às vezes...mas prefiro achar que a vida tem momentos difíceis. Apenas.
Resumindo e perguntando:
- Pode estar-se depressivo e não saber???
- Para fugir à doença temos de nos entregar a ela?!!!
Mais uma velharia com uma enorme actualidade.
Lá eatá....viver ou simplesmente existir, that's the question!
Diria que o panorama actual é esse - grande parte das gentes sofre, efectivamente, de um desencanto embrutecido.
atolle,
"O mundo caminha para ser mais justo e autêntico".
Qual mundo ? ? ? ! ! !
Viver ou sobreviver... Eis a questão!
Hoje estava um pôr do sol fantástico junto ao mar, asseguraram-me. O convite. A recusa. As desculpas do costume, o desejo amordaçado... E a letra de uma música a ecoar na cabeça:
"Some people live their dreams, some people close their eyes, some people's destiny passes by..."
Ou como diria alguém que conheço: "quem não arrisca..."
E amanhã é outro raio de outro dia!
Boa noite!
atolle 11:32 PM
"... e não me venham com falta de moralismos ou éticas.
Gotch ya...!
"Apesar de tudo, o mundo caminha para ser mais justo e autêntico."
Deixa-me rir
Essa estória não é tua
[...]
A acabar o dia de trabalho e ligo o computador no Prós e Contras. JCN a dizer que a grande clivagem na Europa é entre os que são a favor da vida e os outros "merdas" que são pró aborto. Isto num programa em que se discute as religiões e a construção europeia...
Cool... muita cool... bué da cool...
O JCN podia ser usado nas urgências em vez do carvão activado. Pode-me já não provocar vómitos mas é nausea certa...
Angie, se não fossem as pílulas...Um dia fiquei sem elas. Estavam trancadas na mala de um carro em Logroño e a chave só chegava no dia seguinte. Matei o pânico a tisanas de tília, mas ele não morria. Como estava com um asmático, que tinha todo o socorro e a sobrevivência aferrolhada, dialoguei com os demónios toda a noite. E jouer la comédie até a SEUR chegar às 13h e o táxi nos levar à mala. Finalmente precipitar-me como o drogadinho para o paraíso.
A vidinha ninguém ma saca, mas eu saco o Remeron e mais umas coisinhas para dormir. Ando a recuperar 50 anos de sono e faço questão disso. Só faltam 45.
Assim como há quem diga q a vida são umas férias q a morte nos dá, eu mudo-lhe o sentido e digo q a alegria ou boa disposição (ñ chegamos à felicidade), é uma pausa q a tristeza nos dá...
Agora só sobre a felicidade, é megalómano o sentido da palavra pq a fazemos sempre assim, mas se pensarmos q a temos em pequenas grandes coisas, e q embora possamos ñ ter uma vida de felicidade plena, (utopia a meu ver!)temos mtas pequenas felicidades no dia a dia, coisas q mtas vezes ñ damos o real valor...
Temos q começar a dar, para mudarmos o peso da palavra felicidade, para a tornarmos numa coisa mais tangível.
eu penso que a Felicidade assim como o Amor são sentimentos muito profanados e deveras esporádicos
ilco
às vezes sinto-me assim no 'banco da paragem, incapaz do simples passo que o tornaria passageiro do autocarro da existência'
angie, acho que podemos andar a vida inteira a fugir da doença, mas para a ultrapassar vamos ter de nos entregar a ela, eventualmemte, um dia...
atolle, eu também tenho esperança num mundo mais justo e autêntico e acredito que esse dia chegará...mas acho que ainda há um longo caminho a percorrer e não é directo...
professor, gostei e emocionei-me
bjs
@:)
Essa das "boas abertas" faz mesmo sentido em clima de empasse:) não se é feliz mas tambem não se é infeliz, antes pelo contrário....
e o marear sem ventos deixa-nos por vezes em "calmias" que podem anunciar tempestades...
" Estaremos condenados a eterno e cinzento nevoeiro? Talvez, a menos que enchamos coração e peito, inventando a brisa colorida que devolverá aos dias clássico diagnóstico – céu muito nublado com boas abertas."
A postura perante a vida determina muito aquilo que ela pode ser para nós; a alegria, o entusiasmo, a aceitação conseguem transformar e ver nas pequeninas coisas a beleza e a ternura que nos enternecem e nos fazem mover para vida...onde o Ter tem relativa importância perante o Ser...
Sabermos e termos presente que o Fim é inevitavel e irremediável, ajuda-nos a ver melhor que o cada dia, cada momento pode e é uma enorme oportunidade de nos realizarmos naquilo que nos move desde que nascemos que é a Vida onde o Amor é mesmo o que vale a pena...
Este tema é para mim particularmente importante: saber ser e estar na vida da melhor forma possível...
"Dinheiro não dá felicidade..." ummmmm, lá dar, dar, não dá, embora precisemos do suficiente para não termos de pensar nele constantemente. Estarmos presos a tudo o que a modernidade nos tem para oferecer hoje não é uma fatalidade, a malta ainda tem poder de escolha. Ainda por cima não são só as coisas caras que agora abundam por aí a pedir que nos matemos a trabalhar para as ganhar. Há muito mais sítios para passear, parques infantis para onde levar os putos a brincar (e brincarmos nós também).
A questão da tristeza também me preocupa. Não me faz confusão nenhuma ver pessoas que escolheram caminhos diferentes do meu, desde que vivam entusiasmadas. Já me faz muita confusão o conformismo com uma vida cinzenta, e gostava de perceber porquê.
Uma nota sobre JCN ontem no Prós e Contras: gostei do que ele disse quando afirmou que precisamos de entender os terroristas islãmicos, pois ninguém se faz rebentar por desporto. Acho que um cristão deve procurar estas pontes e parece-me inteligente. Penso que entender, neste sentido, não significa aprovar ou desculpar, mas sim procurar as causas da violência (que não significa que sejamos culpados de alguma coisa) e trabalhar a partir daí para tentar eliminá-la. O terrorismo é inaceitável, mas não serve de nada olhar para uma cultura com profundas diferenças em relação à nossa e julgá-la com os critérios da nossa cultura.
Voltei a ler o texto
(acho que por falso desinteresse o li depressa demais...)
COISAS AVULSAS:
1- O tema lembrou-me a entrevista ao EXPRESSO (cada dia pior...) da minha conterrânea Joana Amaral Dias. Que também lá falava da “depressão nacional”. Acreditar, pois claro?
Então a última manobra do governo, que se arrisca a merecer o aplauso nacional, chamada PRACE (programa de reestruturação da administração central do estado) vai com certeza fazer disparar os números da depressão, com os ingredientes clássicos: insegurança, desadaptação, baixa de auto estima, culpabilização, etc. e tal. Os funcionários públicos, coitados, passaram de clássicos enteados da nação a vítimas desta coisa nova e autoritária, a sangue frio e insidiosa, privada, que não é senão 1 puro caso de assédio psicológico do patrão (Estado). Os cidadãos mereciam conhecer os meandros...
Adiante.
Mas...saltar da depressão de uns para a depressão de um povo?
- Não será simplista demais, e uma demagógica armazita de baixa oposição?
Eu não sou suspeita...não votei sequer neles! E sou potencial vítima do PRACE...
Ou será que também vivemos um período de euforia popular no tempo dos Descobrimentos, na era do ciclo do ouro e dos diamantes?!
2- LUTO: palavra adorada pelos psis, que eu odeio.
Totalmente destituída de sentido prático.
Hão-de explicar-me como é que se faz o luto de quem dá sinal de vida todos os dias...
Por favor arranjem outra.
3- A vulgarização da depressão: não será mesmo um excesso sintomático ampliado pela sociedade? À menor coisa, vem logo a cómoda etiqueta desculpabilizante? Antigamente era a colite...agora o lúpus, a depressão...Não estou a brincar com os casos sérios, claro. Mas há 1 comércio para isto tudo..parece-me.
Embora tenha o maior respeito pelos psis que se dedicam a “escutar”(e não só a “ouvir”, como sublinha JMV) as pessoas que verdadeiramente precisam de ajuda!
4- Os astrólogos: fenómeno real e impressionante. Cada dia maior. Pasmo com a quantidade de gente culta, inteligente e com mundo que recorre a esses cartomantes. Como é possível tamanha estupidez?! É que já confessam que lá vão e tudo!
Eu diria que a maior parte das pessoas sobrevive... à vida...
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