Parabéns ao Sporting, bela prova de classe e, sobretudo!, querer. Quanto ao meu Benfica, espero que a desilusão sirva ao menos para moderar alguma arrogância visível em discursos recentes. Mas os anos passam e eu não tenho emenda - eles perdem e fico triste como um puto. Depois obrigo-me a relativizar os factos: refugio-me em poesia e música, lembro desgostos "a sério". Como a morte do Eugénio. Aqui vos deixo uma velharia escrita num dos seus últimos aniversários, agora que chega o primeiro do Murcon:). Fiquem bem.
Para o Eugénio, com gratidão (*)
As manhãs cinzentas no Douro são teimosas; ficam. Aquela não foi excepção. E no entanto, teria sido mentiroso decretar dia melancólico no Passeio Alegre; desde bem cedinho pescadores e domingueiros assistiam, embasbacados, ao espraiar de procissão risonha e pagã. Contagiados por cantos e danças, deixaram as margens do rio à sombra de canas e palmeiras, as pedras órfãs de passos namoradeiros. E se muitos engrossaram a multidão sem perguntas - pois a súbita calma que lhes invadia o espírito chegava e sobrava para justificar a romagem -, outros, escravos da razão, entregaram-se ao tacteio das palavras e gemeram porquês. (Arriscados, o prazer sobrevive mal a busca de explicação.) Mas as gaivotas – também as havia, calcorreando terra, mesmo sem cheiro de tempestade! –, condoídas, tranquilizaram-nos: era magia, sim, mas não satânica; apenas aniversário de trovador amado.
E o cortejo, na sua irreverente solenidade, dirigiu-se a casa de varanda sobre águas próximas e mundos longínquos. À porta, rapazinho e gato, afáveis mas firmes – visita a conta-gentes, a espera de alguns é menos importante do que a fadiga de quem oferece vida e luz embrulhadas nas palavras. Primeiro, incontestados, entraram os amantes sem dinheiro, “silêncio à roda dos seus passos”, ou não mereça o amor respeitosa clareira à sua volta. Depois avançou Apollinaire, companheiro de ofício, rodeado por corte de “saltimbancos, galdérias, vadios, ciganos e anões”, por definição impacientes, urrando que “a esperança é ainda violenta, mas estamos tão cansados de esperar”. (Visita longa, não admira, talentos e almas gémeas...) Cá fora, alguém se despedia, “Não temos já nada para dar./Dentro de ti/não há nada que me peça água./O passado é inútil como um trapo./ E já te disse: as palavras estão gastas./Adeus.” O outro protestava, não convencido, “é urgente o amor, é urgente/permanecer.”,... “Quem não amou/ está morto.”
Exactamente!, Pasolini estava de acordo, arremetia contra os hipócritas: “A farsa a nojenta farsa essa continua”. Que também Ruy Belo desprezava, de propósito vindo lá do Céu onde vivia, “à vontade entre os anjos, com esse sorriso onde a infância tomava sempre o comboio para as férias grandes,". E com eles muitos outros, esplendorosamente nus, livres da sinistra maldição que fez da parra tecido para fatos completos e obsessivos, escondendo esse “Corpo para beber até ao fim/meu oceano breve/e branco,/minha secreta embarcação,/meu vento favorável,/minha vária, sempre incerta/navegação.”
Já levemente incomodado pelo contínuo rumorejo por baixo das janelas, o trovador murmurou: “Palavras...Onde um só grito/bastaria, há a gordura/ das palavras.” Como preferiria repousar nos braços de alguém, pelos seus versos embalado: “Quando a ternura/parece já do seu ofício fatigada,/e o sono, a mais incerta barca,/ inda demora,/quando azuis irrompem/os teus olhos/e procuram/nos meus navegação segura,/é que eu te falo das palavras/desamparadas e desertas,/pelo silêncio fascinadas.” Docemente cruéis, as memórias felizes...
A todos recebeu, face iluminada por severo carinho. Quando partiram acenou-lhes da varanda e regressou a livros e música. Mas não só: “Com que palavras/ou beijos ou lágrimas/se acordam os mortos sem os ferir,”? Ferir, sim, como receava tê-lo feito há muitos anos: “No mais fundo de ti,/eu sei que traí, mãe/...Não me esqueci de nada, mãe./Guardo a tua voz dentro de mim./E deixo-te as rosas./ Boa noite. Eu vou com as aves.”
E do passado voltou a querida mulher da Beira. A solo!, pois não teve homem que a ajudasse a criar o rapazinho. Que a recebeu com madrigal: “Não canto porque sonho./Canto porque és real.” Ela acariciou-lhe a face, esculpida pelo tempo mas suave para dedos maternos. Olhou as gaivotas, perfiladas em guarda de honra na varanda. Sem rancor. Eram livres, belas, irresistíveis, não culpava o seu menino por um dia ter partido. Com gesto breve e imperioso deu-lhes a ordem e o milagre aconteceu: “Uma gaivota passa e outra e outra,/a casa não resiste: também voa.” No meio do vendaval, cabelos soltos de rapariguinha, a velha senhora empurrou, gentil, o trovador: “Abre de novo as asas, querido”. E ele, obediente, beijou-lhe as mãos e preparou as suas, perante olhar guloso das folhas de papel branco.
No Passeio Alegre outro poema ia nascer.
(*) Todos os versos de Eugénio de Andrade citados no texto constam de Antologia Breve, 3ª Edição aumentada.
20 comentários:
Será que o plantel do Benfica é agora melhor, ou pelo menos tão bom, como o plantel do Porto?
Ah, ah, ah, ah!
Maralhal!
Está a nevar em Lisboa!...
Que bonito!...nunca tinha visto nevar em Lisboa...apesar dela se derreter, está a cair imensa neve!
Oh Prof, com todo o respeito, mas tenha lá paciência, o Sporting desta vez foi melhor. Não desanime.
fica para a próxima. Como Gaiense e FCP espero que logo a sorte se incline para nós.
"Biboooo... o Puerto". Não digo o resto.
Sou assíduo do seu blog, parabens.
Linda aguarela, professor!
E digam lá que a tristeza não faz a arte!
Confesso, não conheço (a não ser por si) o (seu) Poeta mas vou gostando, cada vez mais.
Quanto à bola... ela roda que roda!
Um xi-coração para quem o quier apanhar.;]
Boa tarde.
Júlio,
Quanto ao nosso Benfica nem sei que lhe diga...também eu fico sempre tristonha quando eles perdem, até porque tenho tendência a "embandeirar em arco" e pensar que daqui para a frente são favas contadas.:(
Mania a minha, depois apanho com estes baldes de água fria, que com este tempo não sabem nada bem.:))))))))
Mas hoje tenho esta velharia e os versos de Eugénio para me aquecerem a alma.:)
"...agora que chega o primeiro (aniversário) do Murcon". Pegando na deixa, aqui fica novamente a sugestão que deixei ontem no outro post.
JANTAR COMEMORATIVO DO 1º ANIVERSÁRIO DO MURCON
Vamo-nos juntar, cantar os parabéns e dar um beijinho ao seu criador?:)
Comissão organizadora já temos: o Noisy e o Vic merecem continuar pelo excelente trabalho realizado em eventos anteriores.:))))))
Quanto a datas....sábado, dia 25?
Bora lá, pessoal...digam coisas.
Júlio, diga de sua justiça.:)))))
Mozart, um génio, sem dúvida! Mas não o único, não o único...!:))
Para o Eugénio e para o professor:
"Amo o caminho que estendes por dentro das minhas divisões./Ignoro se um pássaro morto continua o seu voo/Se se recorda dos movimentos migratórios/E das estações./Mas não me importo de adoecer no teu colo/De dormir ao relento entre as tuas mãos." (DANIEL FARIA,2003,"POESIA", EDIÇÕES QUASI)
Escrevo com gratidão porque as vossas palavras tanto me ajudam no movimento de crescer.
Regina Ferreira.
Realmente, um azar nunca vem só. Primeiro foi a vitória de Cavaco, agora foi a derrota do SLB frente ao seu eterno rival e em pleno Estádio da Luz. Mesmo lá de longe, Trappattoni ainda tentou avisar que não eram 'favas contadas', mas...
Só o facto de ter visto nevar em Lisboa, me amenizou tamanha tristeza.
Andorinha,
Se o jantar for em Lisboa, conta comigo!
Beijinho
TMM
Morre também uma parte de nós com a morte daqueles que amamos, não é professor? Mas aqueles que amamos e criaram amor, sabedoria, e beleza, esses não morrerão jamais. Um abraço.
No fundo, só os afectos importam...
Tudo o mais é acessório.
"Os amigos amei
despido de ternura
fatigada;
uns iam, outros vinham;
a nenhum perguntava
porque partia,
porque ficava;
era pouco o que tinha,
pouco o que dava,
mas também só queria
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a sede de alegria -
por mais amarga"
Eugénio de Andrade
Fique bem...
Vivi ontem um momento de enorme felicidade. Eu que estou tão céptico em relação ao "meu" Sporting. Há muito que me resignei à ideia de lutar pelo 3.ºlugar. Em nada a alterei, pese embora a vitória esmagadora no derby. Ao intervalo, imaginei uma vitória moral, daquelas que supostamente nos devem fazer sentir que também ganhámos alguma coisa, nem que seja dignidade. Pois eu detesto-as, por me parecerem próprias de quem não consegue aceitar uma derrota e, sobretudo, aprender com ela. Mas a segunda parte demonstrou que estava errado e foi o que se viu. Mantenho o cepticismo, mas, por vezes, dou por mim a pensar se ele não será um mecanismo inconsciente de esperar que a sorte venha ter com o Sporting. Uma espécie de pensamento mágico, que não é sequer superstição, lembrando as vezes em que quando desejamos a chuva, vamos de imediato lavar o carro). Talvez seja também isso...
Fora de lei,
Deixa lá...às vezes é preciso dar um passo atrás para se dar depois dois em frente.
Não vamos perder a esperança, homem.:)
Perdão, deixe-me divagar utilizando tantas das suas evocações (e algumas palavras suas):
“a relativizar os factos” “o prazer sobrevive mal a busca de explicação”.
“E o cortejo, na sua irreverente solenidade” (ou) “A farsa a nojenta farsa essa continua” (sempre buscando) “esse sorriso onde a infância tomava sempre o comboio para as férias grandes,”
…“minha secreta embarcação,/meu vento favorável,/minha vária, sempre incerta/navegação.” “Palavras...Onde um só grito/bastaria, há a gordura/ das palavras.”
Perdão, mais uma vez, mas não resisti a apanhá-las, às frases, às ideias.
Quando era miuda, gostava do Benfica porque era vermelho, e achava a cor gira; hoje hoje não lhe acho tanta piada levando em conta que o futebol é o meu pior rival :):) mas antes esse que uma loira maravilhosa e escultural!
Professor,obrigada por me dar a ler Eugenio de Andrade.Hoje estou tristissima , o meu Benfica não me dá só alegrias .
Os meus sinceros agradecimentos
Carlota Joaquina Atayde
ai o benfica, o benfica. recusei-me a ver o jogo na certeza de que não ia gostar e parece que acertei! mas ninguém ensina o liedson a ser oportuno só quando isso não prejudica o (aspirante-a-campeão) benfica?
quanto ao senhor eugénio de andrade, é sempre um bálsamo catártico. uma delícia.
O Eugénio é para todos os dias, quer sejam de sol, chuva ou... neve.
Ele materializou na sua poesia estas palavras de Platão:
"Todo o Homem deve honrar o Amor; eu próprio honro o que dele depende, a ele me dedico mais que a tudo... Agora e para sempre, eu louvo a força do Amor e o seu valor, tanto quanto está no meu poder."
Noise, terei em conta o teu reparo, obrigada.
"Exactamente!, Pasolini estava de acordo, arremetia contra os hipócritas: “A farsa a nojenta farsa essa continua”. Que também Ruy Belo desprezava, de propósito vindo lá do Céu onde vivia, “à vontade entre os anjos, com esse sorriso onde a infância tomava sempre o comboio para as férias grandes,". E com eles muitos outros, esplendorosamente nus, livres da sinistra maldição que fez da parra tecido para fatos completos e obsessivos, escondendo esse “Corpo para beber até ao fim/meu oceano breve/e branco,/minha secreta embarcação,/meu vento favorável,/minha vária, sempre incerta/navegação.”
Com palavras destas não há folha de papel branco que não fique gulosa de ser escrita. Mesmo não estando tu a tempo de escrever um libretto para Mozart não me parece que estejas assim tão falácio em termos de palavras Boss ; ) Nem pensar.... mas é que nem pensar ; ))) e agora vamos ali acima que com o César das Neves qualquer pessoa acorda bem-disposta ; )))))))))))))
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