quinta-feira, maio 19, 2005

Os 40 anos da D.Quixote

A D.Quixote faz quarenta anos e pediu-me um texto para uma colectânea comemorativa. Única "condição" - o número quarenta. Aí vai o meu rascunho:)



História de um rapaz com sorte



O sonho que o animava era demasiado opulento para que o pudesse desenhar sentado. Percorria a sala de lés a lés, passada larga e decidida, as inevitáveis paredes faziam-no girar 180 graus com o impulso do nadador que encontra o fim da piscina. Os olhos saltitavam entre absortos alcatifados e um êxtase celestial indiferente à fronteira espessa do tecto. Mas os braços eram os reis incontestados daquela agitação – se descontarmos a boca, de que falarei mais adiante –, gesticulavam em todas as direcções, como se interpelassem enorme audiência circular e não uma única pessoa. Curioso era verificar que o transe não comprometia o brilho dos sapatos italianos, o hirto vinco das calças que neles repousavam, os ombros batoteiros do casaco, a gravata de cara distinção, a risca do cabelo orvalhado. Parecia o homem da Regisconta, de súbito convertido a uma outra religião comercial.
Pois, a boca. Obrigada a pisar o acelerador para acompanhar o débito veloz do discurso, arranjava ainda tempo para trejeitos de desprezo quando se referia à concorrência e sonoros beijos na ponta dos dedos, extasiados pela grandeza futura. As palavras, embora ricas em metáforas, de impecáveis acordes gramaticais e traindo muitos ensaios de dicção, poderiam, sem ofensa, resumir-se a uma: sucesso. Porque o sucesso – não o seu, claro! – o obcecava e impelia na descrição impetuosa dos caminhos que a ele conduziriam. Na realidade, inebriado pelo vinho da própria crença, apercebeu-se da pobreza raquítica do termo, substituindo-o por triunfo, o que lhe permitiu fazer humor à custa de velhinha marca de bolachas.
(Sim, porque a graça leve e atempada distende o ambiente em geral e as potenciais vítimas em particular, por um momento recordou longínquo curso de formação para vendedor de colchões ortopédicos e as palavras do especialista, nédio e com unhas sebentas: “façam-nos rir e estão no papo”.)
Suspirou, nostálgico. O caminho fora longo; de vendedor de colchões miraculosos iguais aos outros até agente de vedetas internacionais que chegavam a pisar os palcos cosmopolitas de Vigo, Badajoz e Ayamonte. Mas não se atardou no suspiro, poderia ser interpretado como desalento ou cansaço, estados de alma e físico proibidos, por contagiosos.
Feriu o rapaz com olhar penetrante e disparou,
- Então?
O jovem acordou da trip sem drogas que o levara em digressões triunfantes por todo o mundo. E já lhe provocava até no braço, por antecipação, a cãibra de escritor devida a quem se esgota a dar autógrafos. Rodeado pelos gritinhos histéricos das fãs, antes de mergulhar no corpo a céu aberto de uma qualquer roadie fiel.
Uma última pergunta, de resposta obrigatória,
- Acha mesmo isso?
E o artista que vivia de artistas respondeu, solene,
- Meu caro, salvo as devidas comparações, sinto-me como o Brian Epstein quando foi à Tavern em Liverpool ouvir os Beatles.
Estendeu-lhe o papel.
O puto assinou.
Depois, fantasiando encores futuros para calar a consciência que rosnava, pegou no telefone para falar aos outros. Que atenderam sem suspeita. E ele, apressando as palavras e o fim da conversa,
(aliás monólogo!)
- Gente, decidi-me por uma carreira a solo.
E desligou. Do outro lado, só o pousar do telefone interrompeu um silêncio pesado mas não surpreendido.
Encontraram-se no palco. A raiva dos outros e a sua vergonha deram as mãos, numa estranha alquimia da qual resultou um concerto de brutal intensidade, a fazer lembrar o Tonight’s the Night de Neil Young e os Crazy Horse, que todos idolatravam.
Nunca mais se viram. E o rapaz teve sorte. Num bar pífio de Benavente foi escutado e redescoberto por um agente inglês, que se vira obrigado a passar a noite no Parador por o carro o trair na auto-estrada Corunha-Madrid. Umas centenas de euros compraram as reticências – e o contrato… - do homem da Regisconta. Já não voltou a Portugal, seguiu para o mundo. Não repetiu os Beatles, mas fez sucesso longo e endinheirado, muito para além da raia.
E contudo, anos e êxitos passados, se lhe perguntavam qual o melhor concerto da sua vida, respondia sem hesitação,
- O último dos Ali Babá e os Quarenta Ladrões.
(Os outros nunca responderam aos telefonemas que lhes fazia de camarins solitários, amavam-no de mais para lhe perdoar…).

23 comentários:

PortoCroft disse...

Bom dia Prof.,

A D.Quixote, tem em si um dos seus maiores 'assets' e, se dúvidas subsistissem, este texto 'quixotesco' é disso a prova maior da afirmação que faço.

Quando eu for grande, quero saber escrever assim. Ah!...Pois quero. ;)

Anónimo disse...

Bom dia Prof. e portocroft

bonito texto...

Anónimo disse...

JMV e a sorte do rapaz

Desenhar um sonho demasiado opulento que o animava, com o impulso de nadador – gosto do seu desenho.

Convertido a uma outra religião comercial e inebriado pelo vinho da própria crença – gosto do vinho em geral.

A graça leve e atempada distende o ambiente em geral e as potenciais vítimas em particular – detesto todas as vítimas.

Já não voltou a Portugal, seguiu para o mundo – gosto da fuga dele.

Gente, decidi-me por uma carreira a solo – como o JMV queira, mas será difícil perdoar.

Enfim, gostei, mas não percebo que seja preciso amar de mais para perdoar.

E%E

andorinha disse...

Bom dia Júlio e maralhal,

Estou sem tempo agora, mas contem comigo mais logo.:)

chOURIÇO disse...

Ó Júlio, pá, tá fixe.

Questão (porque me recorda esta obra): não houve aí influência d'«O Chão que Ela Pisa», do Salman Rushdie? A mim, parece-me que sim.

Mas tá muito fixe, como tinha dito supra.

:)

Anónimo disse...

Bom dia Prof. Júlio e a todos

e faço minhas as palavras de portocroft..."quando eu for grande, quero saber escrever assim. Ah!...Pois quero. ;)"

Maite disse...

Tem razão Portocroft,por isso eu digo sempre que os programas (e não só) do professor, são sem dúvida, de uma importância vital para todos e essencialmente para os jovens que estão numa fase da vida em que precisam de informação consistente (sobre assuntos tão importantes como o sexo e os afectos) e de referências cabais e positivas para os tornar adultos mais compreensivos e responsáveis. Aqui deixo mais, uma vez, o repto, para que tais programas vão para o ar a horas convenientes (de horário nobre mesmo) e que não sejam apenas para alguns "eleitos", e que os seus livros sejam mais divulgados. Concerteza que há outras fontes onde os jovens podem buscar referências e que são insubstituiveis como a família e a escola por exemplo. Que lhas dê-mos.

Bom dia para todos

chOURIÇO disse...

Vamos lá estabelecer uma regra simples: concerteza não existe. Escreve-se com certeza.

Isto parece arrogância da minha parte, eu sei.

Mas não é.

Maite disse...

Obrigada pela correcção Chouriço...se encontrar mais alguma é só avisar

chOURIÇO disse...

:)

Anónimo disse...

será que é mesmo preciso amar demais para perdoar???
se assim é, quanto mais se conhece uma pessoa menos se perdoa. mas então porque nos damos ao trabalho de a conhecer tão bem? não faz sentido. faz parte da essência do amor a paciência, a compreensão ad infinitum. ó murcon principal diz qualquer coisa, tu que sabes tudo, e os outros murcões ajudem o primeiro.
abraços peixe lua

PortoCroft disse...

Bom dia PP.

Maite,

Concordo, em absoluto. Eu costumo dizer que tenho uma divída de gratidão, impagável, para com o Prof., e as pessoas julgam que o digo na brincadeira. É que, duma forma preversa, estou-lhe grato por não ter sido a pedra no charco, há uns 50 anos atrás ou eu não estaria aqui. Tão simples quanto isto: As mulheres da geração da minha mãe, pobres mas, poupadinhas e asseadas, nunca teriam sido levadas a lavar preservativos com Tide. ;) Eu sei que até nem se perdia nada mas, confessem lá... Quem daqui vos dá raiva e, por vezes, algum gozo com as suas cabotinices, hein? ;))))

Lamentável é o facto do programa do Prof. continuar a ser olhado, pelos responsáveis de programação da RTP, como uma 'preversidade' e não como uma necessidade premente.

Anónimo disse...

Hello.

Só ontem descobri este blog e ainda me sinto um bocado à toa com os textos (que não sei se os compreendo bem) e a quantidade de comentários.
Há dois pontos que se levantam aqui (se bem entendi o que li). O primeiro é o dilema de uma escolha entre um sucesso profissional, a realização de um sonho, que por experiência própria sei o quão difícil é de conseguir, e a permanência num grupo de amigos, a lealdade, a tentativa (possívelmente frustrante) de tentar o sucesso com os outros. Sucesso ou lealdade, eu ou nós, o futuro ou um passado-presente de recordações felizes. À partida a decisão aponta para a lealdade, mas será que se pode ser feliz a viver no passado e pensar no que podería ser. Vida difícil! É só uma e não dá para voltar atrás e vivê~la outra vez.
O segundo ponto é se é possível perdoar quando se ama demais. Talvez sim ou talvez não. Não há regras no que toca a sentimentos. As recordações de momentos felizes vividos com alguém que nos "abandonou" em troca de um sonho alimentado em conjunto e agora vivido a solo deixsa uma mágoa e nostalgia por vezes difícil de ultrapassar. E aqui confundo-me um pouco porque não sei se a mágoa tem a ver com perdoar ou não perdoar. se bem entendi, não se trata de uma zanga que pode pressupor uma reconciliação, mas de algo bem mais profundo que isso - a mágoa.

Não sei... acham que faz algum sentido esta interpretação?

tiago sousa garcia disse...

Bem, este é um conto que foca um tema que muito adoro: a música. Na verdade, estou mesmo a pensar escrever um livro sobre esta base. Adorei aquilo que li, claro, mas alguém me diz onde é que entra o 40?

Tão só, um Pai disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Tão só, um Pai disse...

Relações, o risco e o "desacomodamento".

O abandono de quem se gosta, com quem se está bem, para perseguir o sonho individual, o de ... "subir" na vida.

Não há arrependimento. Tantos anos depois, a escolha seria a mesma, mas o tempo não sarou feridas, as dos outros.

Quer regressar, rico e famoso, mas, naquela casa, do coração, a porta ficou fechada. Para sempre.

Em devido tempo, nada foi esclarecido, houve desonestidade. Afinal, o tempo não perdou a dívida. E o estatuto de rico e famoso, também não.

Pamina disse...

Boa tarde JMV,

Quanto à qualidade do texto, não é preciso dizer mais nada. Escreve muito bem, como sabe.

Quanto ao conteúdo, "it's lonely at the top", especialmente se esse sucesso foi conseguido à custa de uma traiçãozinha.
Posso imaginar o seu "rapaz" a pronunciar, à hora da morte, as palavras "Ali Bábá". Dava um bom argumento para um filme em flash back, onde um jornalista investigasse o signigicado de tão estranhas palavras na boca de um ex-ídolo pop moribundo. Para bom entendedor...

Tão só, um Pai disse...

... este conto, tem muitas extrapolações ... demasiadas, como uma parábola.

Se o reescrevesse, em vez de

"Amavam-no demais ...", ficaria "Amaram-no demais ...".

Anónimo disse...

Bem visto, Peixe Lua. Concordo com o que o Peixe Lua disse.

um abraço

manuela

andorinha disse...

Júlio,
Belíssimo texto! Tal como o Portocroft e a tataranha também quero escrever assim quando for grande.:)

Subscrevo sobretudo os comentários da Pamina e do TsuP.
E fica realmente a questão - será possível perdoar quando se ama de mais?

andorinha disse...

to Portocroft at 1.18

Looooooooooooool!
Esse teu sentido de humor arrasa-me.:)
" Eu sei que até nem se perdia nada mas, confessam lá..."
Que falsa modéstia! Precisas que te reforcem o ego?:)

PortoCroft disse...

;))))

Andorinha,

E não é verdade? ;)

Anónimo disse...

Eu estou triste :(((, o Júlio não responde ao meu desafio :(((

belo texto, um dia tb serei capaz de escrever assim, entretanto vou blogando...