terça-feira, novembro 21, 2006

O balbuciar de Wish You Were Here.

O DIAMANTE LOUCO


ROGER WATERS (I)


Não deixa de ter piada: fama e proveito de liderar a banda de rock mais preguiçosa do mundo e aqui estou eu, metido no estúdio ao fim-de-semana, os técnicos de som iam tendo um enfarte quando lhes telefonei. Claro que estou atrasado, mas isso não passa de justificação oficial, angustia-me pensar o disco pronto. Ando a dar com toda a gente em doida com as minhas incertezas - uma palavra aqui, um baixo diferente acolá, estico ou encolho a segunda parte de Shine On You Crazy Diamond? Tive um sonho horrível: Syd aparecia-me com o disco debaixo do braço, plantava-se à minha frente em silêncio e nem um pedacinho de papel ou vinil ficava para amostra; tudo pelo ar, confetis de Carnaval. Uma versão enorme dos pisa-papéis da minha infância, o velho trouxera-os da Suiça, sacudia-se e recomeçava a nevar. Os olhos frios, um desdém acusador, o meu psiquiatra falou de projecção da culpa. Para o inferno, ele e o busto de Freud por cima da lareira. Já não suporto a teoria brilhante de críticos azedos, eu e David não somos nenhuns meninos de coro, mas acusar-nos de empurrar Syd para a loucura não lembra ao Diabo. Es-qui-zo-fre-ni-a. Ali, no papel do internamento, ninguém a sabe explicar e ponto final. Os palavrões são o que menos importa, há meses e meses uma sombra o invadia, olhares perdidos, exigências estranhas, aferrolhado no camarim antes do palco, desaparecido logo a seguir. E os risos, solitários, a despropósito – “não é nada”, dizia -, mas olhava-nos como se percebesse coisas escondidas atrás de nós ou disfarçadas por frases inocentes; fazia medo. Cada vez mais longe. Vi-o partir com pena e alívio, sempre o visitei pouco, a loucura verdadeira – sem ajudas químicas e bilhete e regresso – assusta-me. Como a morte, nunca se sabe quem vai a seguir. E no entanto, depois do sucesso de Dark Side, fui assaltado por uma nostalgia enorme - ele desejara o êxito como nós, fomos lentos. Mas custou muito trabalho a encontrar o equilíbrio. Ou talvez não, se calhar só naquela altura tínhamos crescido o suficiente para nos darmos ao luxo de vender milhares de discos sem paranóias de ter traído. Nós; ele não. Teria desatado aos berros, feito um discurso acerca de música comercial e efeitos habilidosos, até acabar no meio da sala a perguntar se nos esquecêramos do rock. Foi a ele que traímos, afinal. À sua música, bem mais desesperada do que a minha, cheia de roupagens e fantasmas. Syd compunha à base de dor e guitarras roufenhas, o coração da capa do disco poderia ser o dele, mas com uma montanha de calmantes em cima. Tenho saudades. Shine On surgiu naturalmente, é uma canção mentirosa, ele não voltará a brilhar. Mas durante semanas a primeira frase perseguiu-me, quase escrevi “recorda quando éramos jovens”, tudo o resto são imagens enganadoras e vazias, só voltei a sentir a caneta firme quando escrevi as linhas finais, seria eu capaz de trocar o triunfo por uma brisa calma a seu lado? Era um perdigueiro magnífico, sempre à procura, nada lhe servia abaixo da verdade e do delírio. Não sei, e se continuar metido neste quarto de banho a escrever e a charrar também não vou descobrir. Chamar os outros não seria solução, é do que foram que sinto a falta, não do seu presente dourado. Quem me dera que estivéssemos todos juntos como antigamente, antes de Syd buscar refúgio dentro de si. Apetece-me escrever uma canção sobre o engano monstruoso que consiste em confundir contas bancárias e sabedoria, arrogância e fuga dos velhos medos, agitação e movimento. Uma melodia simples, a letra como um falso diálogo. Por trás de Syd e dos outros é comigo que falo, às voltas num aquário, as respostas fazem-me negaças. Vasculho música e dinheiro e tenho saudades de um riso franco de mulher, cabelos ao vento, dedo em riste, acusando-me de autopiedade… Jesus, que solidão! Existirá resposta? Fora de mim?

15 comentários:

thorazine disse...

"Era um perdigueiro magnífico, sempre à procura, nada lhe servia abaixo da verdade e do delírio."

Excelente descrição. Talvez a verdade e o delírio caminhem lado a lado. Talvez ele morreu na verdade que todos procuram..

Obviamente que aos nosso olhos não passa de um "descompensado". Mas já dizia o outro, sanidade é tudo uma questão de estatística..e este mundo não esteja estruturado para seres humanos que vivam "na verdade" .:))

thorazine disse...

"Vasculho música e dinheiro e tenho saudades de um riso franco de mulher, cabelos ao vento, dedo em riste, acusando-me de autopiedade… Jesus, que solidão! Existirá resposta? Fora de mim?"

A lucidez que a solidão traz..e imagino eu que a velhice e o cansaço (não disto ou daquilo, somente cansaço) não dê a estaleca necessária para a procura de respostas exteriores..

"Dar de beber à dor é o melhor, já dizia a mariquinhas!" :))

Mario M disse...

Talvez em Ummagumma?

andorinha disse...

Boa noite.

Estas velharias não comento:)

Thora,
A lucidez que os vinte anos trazem!!!:)))

thorazine disse...

Andorinha,
antes fosse! :)

Bem,
anda à procura do video de Sly and the Family Stone no "Ed Sullivan Show" e encontrei estas pérolas: http://www.searchforvideo.com/entertainment/tv/the-ed-sullivan-show/

:))

ASPÁSIA disse...

À sua música, bem mais desesperada do que a minha, cheia de roupagens e fantasmas.

A velha ligação Arte-Perturbação Mental.

Exemplos:

Syd Barrett
Jim Morrison

Beethoven
Schubert

Van Gogh
Picasso

Fernando Pessoa
Florbela Espanca

O cérebro do Artista por vezes não consegue conter o turbilhão criador que de si próprio extravasa.

Ou precisamente a sensibilidade extrema que lhe faz abrir corpo e alma à invasão da onda criadora, também o fragiliza psíquica e emocionalmente a ponto de lhe cindir a personalidade em estilhaços, cada um dos quais reflecte uma faceta do Diamante Louco que se pode considerar o verdadeiro artista.

ASPÁSIA disse...

As noções de paranoia e esquizofrenia têm sido largamente utilizadas, na crítica cultural contemporânea, como sintomas da fragmentação da esfera cultural pós-moderna, a mudança vertiginosa na cultura da tecnologia e do consumo e o desaparecimento de um sentido unificado do humano e da subjectividade. Por outro lado, paranoia e esquizofrenia são também frequentes referências críticas para a análise da sucessão entre o medo da destruição nuclear (ou o ‘equilíbrio do terror’), que dominou a época da Guerra Fria, e o medo do terrorismo, que domina, actualmente, a cultura pública e a sensibilidade. O terrorismo tem ainda conferido novo ímpeto à discussão sobre a natureza do mal, conforme se torna popular a persuasão mitológica de que esta é uma ‘época de terror’ e de ‘guerra ao terror’. Estas transformações são abordadas, nesta cadeira, do ponto de vista antropológico e da relação entre a saúde mental, práticas culturais, sistemas de representação simbólica e a crítica das visões totalizantes. O programa é constituído por duas subdivisões temáticas.

1. PARANOIA CULTURAL: CORPO, MENTE E ESPÍRITO
2. A VIDA DA MENTE E A BANALIDADE DO MAL
O primeiro tema trata das representações da paranoia na literatura, arte e cinema, nos últimos vinte anos, e a crítica das naturalizações do medo e da insegurança. Particular atenção é dada ao resgate da espiritualidade religiosa numa moral ‘pós-moderna’ baseada na desmaterialização do corpo. No segundo tema, as reflexões criticas que Hannah Arendt consagrou sobre ‘a vida da mente’ e ‘a banalidade do mal’ são abordada do ponto de vista da actualidade crítica destes conceitos para o debate sobre a saúde mental, as práticas e simbolizações do mal e a vulnerabilidade humana nos actos de terrorismo.



Resultado de uma pesquisa no Google sobre "esquizofrenia e arte".

Texto retirado do programa da cadeira de Antropologia do ICBAS... suponho, que, dada precisamente pelo Prof!...

ASPÁSIA disse...

Felizmente ainda há muito grandes artistas que não cederam ao "peso" da sua própria vocação...

Para mim o melhor exemplo, o 2º Maior Homem do Séc. XX, a seguir a Einstein:


Charlie Chaplin

ASPÁSIA disse...

JÁ AGORA NOTE-SE QUE O PRÓPRIO EINSTEIN TINHA UMA FACETA ARTÍSTICA: TOCAVA VIOLINO.

EM GERAL, A PERTURBAÇÃO MENTAL NÃO SURGE NO CIENTISTA QUE TAMBÉM É VOCACIONADO PARA ARTES OU LETRAS.

EX: ANTÓNIO GEDEÃO, ABEL SALAZAR.

EM GERAL A PERTURBAÇÃO MENTAL SURGE NO "ARTISTA PURO" OU NO "CIENTISTA PURO". (RECORDAR O FILME "MENTES BRILHANTES" - O CASO DO MATEMÁTICO ESQUIZOFRÉNICO).

HAVERÁ ALGUMA EXPLICAÇÃO PARA ESTE FACTO?

E EU AGORA QUE JÁ ESPREMI OS MEUS NEURONIOZINHOS EM PROL DA COMUNIDADE, VOU A UM MERECIDO SONINHO... COM A CONSCIÊNCIA DO DEVER CUMPRIDO... E DE NÃO FICAR A DEVER NADA A NINGUÈM...

ATÉ AMANHÃ.

thorazine disse...

"Felizmente ainda há muito grandes artistas que não cederam ao "peso" da sua própria vocação..."

Porque dizes que "cederam ao peso" da sua vocação?
Visto por esse prisma Einstein só não cedeu porque existiam outros "pequenos! Einsteins que o compreendiam (o pelo menos tentavam) evitando que ele mergulhasse na solidão, como qlq outro visionário que referiste atrás.. :)

ASPÁSIA disse...

NOISE

COMO APÓS TER SAÍDO DESTA CAIXA AINDA FUI LÁ ATRÁS (POST DO POWERPOINT) E VI QUE ME CALUNIASTE, SEM QUALQUER PROVA, ATRIBUINDO-ME A "MONTAGEM E DESMONTAGEM DE UM CIRCO" E A "CRIAÇÃO DE VÁRIOS PERSONAGENS" - ATÉ ME SENTI DEUS!!! - AQUI HÁ TEMPOS NESTE SITE,
LÁ DEIXEI A RESPOSTAZITA.
ESPERO QUE FIQUES SATISFEITO, NOISE.
TAMBÉM CONVIDO O RESTANTE PESSOAL A LÁ IR ESPREITAR PARA VER A CAPACIDADE INVENTIVO-CALUNIADORA DO NOISE... EU QUE JULGAVA QUE ELE ERA MAIS ESPECIALISTA EM OUTRAS "ARTES"... COMO AQUI ANDA CONSTANTEMENTE A APREGOAR...

ATÉ AMANHÃ II...

alquimista disse...

Ouvimo-los muitas vezes no Rádio Clube Português que faz hoje 75 anos...E apropósito lembro-me de coisas como o PBX, Em Órbita, Parodiantes de Lisboa, Igrejas Caeiro, Curado Ribeiro, João David Nunes, Luís Filipe Costa, Adelino Gomes, Joaquim Furtado (a malta mais nova lembrar-se-à apenas da filha)e as reportagens da chegada do homem à Lua (Neil Armstrong) ou do 25 de Abril. Era só nesta rádio que passavam,antes da revolução e "clandestinamente", os "Vampiros" do Zeca Afonso.
Hoje chama-se, simplesmente RÁDIO CLUBE. Economia verbal ou crise de identidade?

A Menina da Lua disse...

Alquimista :)

Muito bem lembrado; excelentes programas principalmente o Em Órbita que me lembro de sair a correr do liceu para o ouvir e que na altura tinha um figurino diferente do que foi o posterior Em orbita mas só com música clássica.

De facto cada música que ía saindo tinha o peso e a dimensão dum acontecimento cultural. "Wish You Were Here" foi uma delas em que nos reuníamos de propósito para concentradamente a ouvirmos e até meditarmos sobre ela...(mas sem fumos juro...:)))

ASPÁSIA disse...

ALQUIMISTA E MENINA DA LUA

CURIOSAMENTE, POSSUO UMA K7 COM A GRAVAÇÃO DO "DARK SIDE OF THE MOON" AQUANDO DA PASSAGEM DO LP NO "EM ÓRBITA".
CREIO QUE TAMBÉM GRAVEI "THE LAMB LIES DOWN ON BROADWAY"... MEADOS DOS EIGTHIES... BONS TEMPOS!!!

Lord of Erewhon disse...

P. S. Se alguns dos temas tiverem um poder evocativo para além do que pode suportar um coração cansado... Calmantes!

P. P. S. Pois, as parafilias... o politicamente correcto, os pruridos históricos da psicanálise... Dizia uma das senhoras: «de um submisso também quero que me arrume a casa e me vá às compras», etc... :)

E dizia o avô Freud que - cito de memória - quando um comportamento sexual (a simples sobrestima: sexo oral, por exemplo) se substitui em preferência ao genital/genital é parafilia... Pois.

Mas eu não quero que a Organização BDSM seja tratada como doente... quero mesmo que seja tratada como criminosa.

Fique bem.