sexta-feira, janeiro 26, 2007

Um contributo...







Muitas perguntas poucas respostas (2)
Maria José Nogueira Pinto Jurista


A prisão da mulher que aborta tornou-se, neste referendo, o ponto nevrálgico da exploração de uma frágil e fragmentada consciência colectiva. Quem é que quer ver as mulheres presas? A esta pergunta, cada um de nós precipita-se a olhar para dentro de si mesmo. E vê o quê? Vê essa mulher abandonada, entregue à sua sorte, desesperada. E que diz? Não, eu não quero que ela seja presa!Antes de nos deixarmos arrastar por este "círculo em expansão da compaixão moral" é obrigatório, por uma questão de honestidade intelectual, que se analise do quê e de quem estamos a falar.Na reflexão que este referendo exige de todos nós, convém lembrar que o aborto é um crime na exacta medida em que a vida humana é um valor essencial e o direito à vida a base de todos os outros. Destruir uma vida que tem todas as condições para prosseguir o seu ciclo natural de de-senvolvimento é uma violência muito superior à que possa sentir a mulher que aborta por um puro acto de voluntarismo, quando é julgada.Em todos os ordenamentos jurídicos o aborto é um crime precisamente porque a vida humana é um valor fundamental, incluindo, naturalmente, a vida humana intra-uterina. A lei de 1984 não afasta este princípio basilar, apenas tipifica situações excepcionais, casos-limite. E noutros países o que se pôs em causa foi a existência, ou não, de vida humana nas primeiras semanas de gestação. Questão eminentemente do domínio da ciência e não do direito. Sendo que o progresso científico, entretanto verificado, fez desaparecer a base empírica da oposição fundamental entre o ser nascido - visível e imediatamente presente na vida social - e o ser não nascido, inacessível e oculto.O ser humano não nascido aparece agora, e aparecerá no futuro, em contextos sociais cada vez mais extensos, como uma entidade ética e jurídica de per si.A primeira pergunta a exigir fortemente resposta é a de quantas mulheres foram julgadas em Portugal? E dessas, quantas foram condenadas? E dessas, quantas cumpriram pena de prisão?É que, enquanto um "sim" genérico e cego desvaloriza em absoluto o acto de abortar e elimina do nosso ordenamento jurídico o valor da vida humana até às dez semanas de gravidez, a ponderação, caso a caso, das concretas circunstâncias em que cada concreta mulher, ela e a sua condição, foi levada a abortar é o único caminho justo que distingue comportamentos assentes em puro laxismo irresponsável, pura leviandade (que numa sociedade responsável não devem merecer compaixão), das situações condicionadas por factores objectivos, que podem explicar uma atitude extrema. Este distinguo é da essência do sistema judicial e é uma das mais relevantes funções dos magistrados.Ao contrário do que alguns pensam, não há leis responsáveis para comportamentos irresponsáveis. Mas há sempre uma aplicação responsável da lei, e essa é a melhor garantia.É bom relembrar que o "sim", neste referendo, não contribuirá em nada para acalmar a consciência colectiva não só quanto à pobreza e solidão das mulheres que abortam, como também quanto à humilhação do julgamento ou da prisão. Podia até ser verdade se a pergunta que vai ser feita aos portugueses fosse outra... Mas não é. Com este "sim", às dez semanas e um dia, as mulheres que abortarem - na mesma pobres, na mesma abandonadas, na mesma humilhadas - podem ser presas.Nada aflige mais a minha condição feminina como ouvir e ver na televisão homens mediáticos a perorarem, com um conveniente ar e tom compungido, sobre as pobres mulheres que abortam, porque abortar é sempre mau, lembram, um trauma, já se sabe, mas paciência, o que é que se pode fazer?Como se na origem da gravidez não estivesse sempre um homem e na origem do aborto não estivesse quase sempre um homem que se demite, foge e abandona.E se a prática do aborto é sempre algo mau, doloroso e traumático para a mulher, e portanto não desejável, porquê apresentar a sua liberalização (afinal a mulher irremediavelmente entregue à sua sorte) como a melhor resposta que a sociedade lhe oferece, apresentada como uma conquista civilizacional?Finalmente, mas não menos relevantes, são as dúvidas que suscita a aplicação prática do "sim", caso ganhasse. É que uma lei cria direitos e gera legítimas expectativas quanto à sua aplicação. Como daria o Serviço Nacional de Saúde resposta a este novo direito? Com que meios? E em detrimento de que outros direitos em saúde?Sendo os recursos escassos, o "sim" vai legitimar a redistribuição desses recursos em nome de uma política pública paga com os nossos impostos. Vão cortar na prevenção do cancro da mama ou do colo do útero? Vão passar de quatro para oito anos a lista de espera para o tratamento da infertilidade? Vão deixar cair, ainda mais, as disposições da lei do planeamento familiar, cortando consultas, anticonceptivos gratuitos e informação e formação às mulheres? Vão reduzir os médicos de família? Vão desinvestir nos doentes crónicos? Vão fechar os olhos às doenças neuro-degenerativas que afligem crescentemente os idosos? Vão fechar serviços de Saúde dificultando mais o acesso dos cidadãos? Como vai o Ministério da Saúde pagar a contratualização de clínicas privadas no caso, já dado como certo pelo ministro, de o SNS não ter capacidade de atendimento?É a estas perguntas que é urgente dar resposta. Ficamos à espera.

5 comentários:

Marx disse...

É interessante como se utilizam argumentos destes, claramente válidos noutras circunstâncias, para condicionar os "eleitores". Que existe todo um trabalho pela frente, pela necessidade de adequar o SNS à uma nova eventual realidade, é inegável. Mas que perante as dúvidas sobre o sucesso dessa necessária "reestruturação" se deva escamotear a importância da escolha em causa é sinal, no mínimo, de pouco corajoso. Que se levaria a sério se MJNP não fosse uma "especialista" da política.

De todo o modo, registo uma preocupação que também tenho. O que fazer para que todas as IVG's não passem as 10 semanas. Num claro sinal de que o Sim não se deverá esgotar no referendo.

Afonso Gaiolas disse...

Olá a todos,
O ideal cívico compele-me a deixar-vos a minha opinião, velha de quase dois anos, mas à qual não retiro ou acrescento uma vírgula.

Um abraço,
Afonso Gaiolas

Sexta-feira, Abril 22, 2005

Referendo sobre o aborto, ou um aborto de referendo?

Diz-se daqueles que, apesar de receberem contínuos sinais de recusa das fêmeas que tentam cortejar, apesar de engolirem mais sapos do que as margens da ribeira de Cobres albergam, se insinuam de tal forma insistentemente que a conquista do troféu se dá pelo cansaço, diz-se, dizia eu, que a façanha foi conseguida por "esmagamento".
Serve esta analogia para ilustrar o que me parece ser o pensamento de alguns sectores da nossa sociedade face à problemática do aborto em Portugal.
Merece o assunto as controvérsias de proporções bíblicas que proporcionou nos últimos tempos?
Tudo isso e muito mais.
Penso, contudo, que muito se tem rematado, mas continuamente ao poste, poucas vezes se discutindo o que realmente interessa debater.
Vou começar pela própria palavra ABORTO - Acto ou efeito de abortar. Nunca o dicionário refere a aniquilação de um ser como significado da palavra, mas ao invés, define-a como a expulsão do feto antes do fim da gestação, ou ainda "o que nasceu (começou a ter vida exterior) prematuramente".
Curiosa esta diferença conceptual de vida exterior e interior, tão curiosa que nalgumas comunidades que não a nossa, de desenvolvimento imaculado e mãos sempre limpas, se considera a contagem de ambos os períodos na idade das pessoas.
Todos consideramos como o mais hediondo dos crimes a eliminação de um ser recém-nascido. Pois bem, construamos uma simples fita de tempo. No intervalo temporal D+x (sendo D o momento do nascimento e x qualquer período que escolhamos (1 mês, 1 ano, 10 anos, 100 anos, ...), a palavra assassínio estará sempre presente, se decidirmos aniquilar um ser humano em qualquer destas idades. Mais complexa se torna a análise se trocarmos o sinal da adição pelo da subtracção. A partir de que momento consideramos estarem reunidas todas as condições para que, em consciência, possamos afirmar existir VIDA? Pensar demasiado sem conhecimento científico suficiente, torna angustiante a busca de respostas. Confesso que foi o que me aconteceu. Tanto mais que a proliferação de artigos sobre o tema em causa só torna ainda mais nebulosa a formação de uma opinião. Uma fracção de segundo, um dia, dez, doze, dezasseis semanas ou nove meses?
Defendo que as leis de um país se devem reger pelos valores morais que os seus cidadãos consideram ser os correctos, nunca se devendo ceder à tentação de resolver um problema com outro problema. Não me serve portanto o argumento da falta de informação, da má qualidade das instituições de solidariedade social que prestam a educação a quem não pôde ser acolhido por uma família, da inconveniência temporal, ou qualquer outro de cariz similar.
Em coerência devo portanto afirmar que, sendo o valor da vida o mais importante na escala das pertenças individuais, a partir do momento em que cientificamente me provarem que a centelha existe, devem ser repudiados todos os actos contrários ao seu desenvolvimento e maturação.
Pois, pois, centelha é muito vago...
Estava só a tentar ganhar tempo para que o meu cérebro me ajudasse...
Disse cérebro?
Se trocarmos um rim, continuamos a ser nós próprios?
Concordam que sim!
Se trocarmos de coração, continuamos a ser nós próprios?
Concordam que sim!
E se trocarmos de cérebro?
Eu convictamente penso que não. Acredito aliás que a verdadeira fonte de longevidade para os seres humanos reside na substituição de "componentes", preservando ao máximo o único insubstituível - o cérebro.
Reside aqui portanto a resposta à minha pergunta.
É verdade que no momento da concepção, potencialmente temos uma vida a ser gerada. Mas estamos ainda no domínio das células indiferenciadas, e a verdade é que, mexendo os cordelinhos certos, ou errados, conforme o ponto de vista, podemos gerar uma miríade de monstruosidades que com a vida nada têm em comum. Não considero portanto que os inúmeros bancos de embriões existentes pelo mundo sejam imorais, uma vez que a essência de cada ser individual ainda não existe - que o cérebro ainda não se formou.
Parece ser cientificamente aceite que todos os principais componentes do cérebro são claramente distinguíveis praticamente cinco semanas após a concepção. Assim sendo, em nome da coerência, até essa data (ou qualquer outra mais precisa que cientificamente seja acreditada) não deveria ser criminalizada, penalizada, ou sequer moralmente condenável a decisão de inviabilizar a evolução do embrião. Dentro deste período, englobar-se-iam os casos excepcionais já previstos na nossa legislação, exceptuando claro o risco de vida para a mãe. Para a análise de malformações, ter-se-ia que fazer um esforço, grande, é certo, mas realizável se bem direccionado no sentido de, por análise genética, se determinar o mais precocemente possível a sanidade de cada futuro ser humano.
Tendo tornado clara a minha posição, resta-me tecer um comentário, necessariamente cáustico ao slogan "A barriga é minha, faço dela o que quiser!", e outras idiotices do mesmo calibre, que só tornam ridícula a posição de algumas mulheres, que pensam ser este o cavalo de batalha final contra a opressão masculina. É verdade que é o indivíduo do sexo feminino o veículo hospedeiro do novo ser que está a ser gerado, e que provavelmente é o acto mais nobre a que alguém poderá em toda a sua vida aspirar, mas isso não tira o direito e simultaneamente a responsabilidade do homem perante o seu filho. Deveríamos pois ver ambos os progenitores condenados pelo acto abortivo, se existisse o conhecimento da acção, mas pela mesma ordem de ideias, negar a unilateralidade materna na decisão de continuar, ou não, com o processo de gestação.
Quanto aos direitos sobre a barriga, esses são inalienáveis (embora algumas devessem receber mais conselhos sobre estética), mas quando se trata da geração de um novo ser, ainda e sempre reaparece o velho, mas sábio conceito, que sumariamente nos lembra que a liberdade individual termina onde começa a liberdade de terceiros.
Decidam em consciência!

CêTê disse...

Boa estratégia, professor!;P

Paulo disse...

Jackal…
No mínimo conseguiste dar-me um “nó” ainda maior ao cérebro do que aquele que eu já tinha… :-)
(Já agora onde conseguiste essa informação de “… ser cientificamente aceite que todos os principais componentes do cérebro são claramente distinguíveis praticamente cinco semanas após a concepção…”??? É que como já disse noutras alturas nunca consegui encontrar grande informação entre o que se passa neste campo ente as 5/6 semanas e as 10 semanas)

thorazine disse...

"Parece ser cientificamente aceite que todos os principais componentes do cérebro são claramente distinguíveis praticamente cinco semanas após a concepção.."

"Parece ser..." - disse você! Promenor importante, já que até então poucos estudos vi sobre isso! No documentário da PBS "The secret life of the brain" desenvolvido por um grupo multidisciplinar de cientistas (que incluia tb o Dr. António Damásio) refere que nada é conclusivo nesta área e que NÃO está determinado o inicío da actividade neuronal. Ter estruturas para é diferente de ser realmente funcional! Usando um exemplo parecido com os seus, uma pessoa pode nascer com um rim ou com um cérebro (físico) mas os seus processos fisiológicos não existirem ou serem reduzidos! Certezas nesta área não há..essa é a única verdade que se pode tomar com certa! ;)