sexta-feira, maio 12, 2006

Enquanto escuto os Tull:).

Peregrinações



Fui com o João ver os Jethro Tull ao Coliseu. De passagem, jantámos no senhor Manuel. Escolha evidente, o espectáculo era no centro e durante a semana. Como de Segunda a Sexta finjo respeito pela dieta, avançar para o entrecosto do Escondidinho seria pecado grave. Mas razões menos superficiais e gastronómicas justificavam regresso a restaurante paredes meias com a antiga casa dos velhos. Não voltara ao senhor Manuel depois de a deixarem e eu lá passar dias solitários, decidindo o que trazer comigo, além das recordações de quarenta anos. A própria rua se me tornou desagradável, ainda hoje evito olhar aquela porta. Também o restaurante abarrotava de memórias. Numa das suas últimas visitas, meu Pai apagara-se com uma hipoglicemia e os companheiros de tertúlia ajudaram a transportá-lo para o automóvel, já apontado para o serviço de urgência. Quando eu ia arrancar, recobrando os sentidos, perguntou o que acontecera. Fui sintético – “desmaiaste a comer a sopa, vamos ao hospital”. Ele brindou-me com um olhar entre o divertido e enfadado – “por uma simples baixa de açúcar? Que disparate, meu filho!”. E voltou à mesa de almoço e ao seu empadão de carne, que liquidou com assinalável apetite. Eu parecia ter um sinal de trânsito proibido na garganta...
Quando morreu, fui dar um abraço ao senhor Manuel, devemos-lhe muito. Sobretudo o velho, que o cumprimentou anos a fio, antes de abancar na mesa do canto para a sua adorada cavaqueira. A reforma apanhara-o desprevenido. Sentia-se inútil longe da Universidade e não lhe inventara alternativas, trata-se de erro comum e com preço alto. Aquela roda de amigos aumentou-lhe a esperança de vida e a cultura geral, recordo-lhe o espanto ao descobrir certos quotidianos, tão diferentes do seu - “Julinho, sabia que fulano chega a fazer duzentos quilómetros diários a visitar clientes? É obra!”. E eu sorria, ele era um intelectual pouco versado no comezinho. (Nas garagens, os mecânicos olhavam-no de soslaio quando os tratava por V.Exa., receavam escárnio onde apenas existia educação esmerada e democraticamente distribuída.)
A minha fora menos teórica, as “ilhas” de Anselmo Braamcamp ensinaram-me as nuances das palavras. Aprendi, por exemplo, que uma boa obscenidade traduz, por vezes, respeito, alegria ou surpresa, e não insulto aos outros. Junta, não separa. E no entanto, foi nesse ambiente que primeiro entrevi a parte de mim que sempre se mantém à distância de acontecimentos e pessoas. Depois de enorme discussão na escola, o meu furioso interlocutor resolveu simplificar a questão e não se perder em atalhos de oratória - “logo à tarde vou-te a esse focinho”. (Perspectiva que não me entusiasmava.) Saí em passo acelerado e, uma vez na minha rua, convoquei os amigalhaços. Que de imediato se disponibilizaram para ajudar, afinal era juntar o útil ao agradável, também eles adoravam uma boa cena de pancadaria! Tudo acabou em batalha à pedrada, que observei sem lançar a que furiosamente apertava na mão. Durante muito tempo pensei que a simples cobardia fosse a razão de tal alheamento, mas percebi depois que algo me afastava daquela guerra infantil e sem maldade, algo que ao longo dos anos me fez dar um passo atrás em diversas ocasiões – sou, por natureza, um espectador. A vida nem sempre mo permitiu...
Enfim, facto é que decidi ser tempo de enfrentar o bom do senhor Manuel e os fantasmas empoleirados nos seus ombros. Recebeu-nos com a ternura habitual. Num dado momento, quando o João foi aos lavabos e ele fez um comentário acerca de como ainda recordava os meus putos crianças, imaginei o velho sentado ao canto, abrindo-se em sorriso enternecido: “Como estão gentis, os nossos meninos!” E pensei que não morrem apenas pessoas, mas também estilos, é tão raro ouvir a palavra gentil hoje em dia! Saí do restaurante cheio de uma tristeza aliviada, fugir a este tipo de angústias é demasiado próximo da traição pura e simples à lenda familiar que connosco acarretamos.
No Coliseu a angústia era de outro género, estas incursões revivalistas podem ser penosas. Fui espiando as reacções do João, receoso de esgar sardónico ou desiludido, os cinquentões em palco não pareciam de confiança. Até que os primeiros acordes de Thick as a Brick ecoaram pela sala e me fizeram saltar o pé. O João confirmou a esperança, virou-se para mim com um sorriso de orelha a orelha e sentenciou - “igual ao disco”. Era verdade. A voz de Ian Anderson já não conseguia meter a quinta, mas a demoníaca flauta puxava-nos com a mesma energia de outrora. Ofereci-me, por fim, o gozo do concerto.
E da assistência! Inevitavelmente, abundavam barriguinhas e carecas, o líder da banda tinha 53 anos e nós crescêramos com ele. Tantas recordações daquela sala... Grande parte delas já perderam a moldura emocional, recordo mas não sinto. O circo. O futebol jogado por equipas de cães, os palhaços incapazes de me soltarem o riso, sei hoje que fui uma criança sisuda. O voo dos trapezistas, o chicote estralejante do domador de feras, a cartola do mestre de cerimónias. E a miudinha que girava, girava, de cada vez aterrando nos pés do pai, que de novo a lançavam rumo ao tecto, o homem de negro contava as piruetas e fazia batota, “Marianita, o público não paga para tanto!”. Joselito ao colo de familiar ou segurança, face infeliz de menino prodígio explorado, cachecol protegendo a preciosa garganta que cantava La Campanera. (Não me lembro do espectáculo e não admira, sempre detestei criancinhas mimando adultos.) Uma das raríssimas saídas nocturnas de meu Pai, a família inteira rumo a filme emblemático, o Dia Mais Longo. O velho adivinhando as próximas cenas e eu também, ambos devorávamos livros sobre a Segunda Guerra Mundial. Filme longo e eu satisfeito, não era vulgar sair à noite e muito menos com ele, que gozara a vida antes do casamento e resistia heroicamente a qualquer apelo para deixar as pantufas. A minha namorada de olhos baixos, “sem a mãe não podemos”. E lá íamos, em liberdade condicional estreitamente vigiada. Recordo A Noiva, filme de fazer chorar as pedras e a minha ex-futura sogra também, a viuvez não lhe estrangulara o coração romântico. Os concertos, já adulto: Bethânia, Rui Veloso, o Sérgio, o Chico, acima de todos Ferré. O Sérgio é um amigo e o Chico também (ainda que ele o não saiba), mas o anarquista de preto vestido pregou-me à cadeira, fascinado e com um nó na garganta.
De olhos fechados, ouvi-os todos de novo. Como se a incansável flauta de Anderson os tivesse convocado e encarregue de me lembrar que a sua música foi o pano de fundo sobre o qual se desenrolou a minha vida. Depois do concerto, na rua, o João foi parco em palavras – “valeu a pena”. E o velho dele, filho do que desmaiava no senhor Manuel, concordou. Pensando que apenas faltara Guilherme em noite de arromba. Porque as peregrinações familiares, para serem perfeitas, exigem a presença dos três!

21 comentários:

Fora-de-Lei disse...

Se o Ian Anderson ainda toca bem o "pífaro", então está tudo ok...

Dijambura disse...

É no rio da memória onde tudo se mistura e quando vêm à superficie certas delicias sentimos uma ternura e um sabor tão doce.
Dijambura

noiseformind disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Tiago disse...

Fui eu iniciado em Jethro Tull através do meu velho. Muito bom.
No, you're never too old to Rock'n'Roll if you're too young to die.

noiseformind disse...

O João vai tendo sorte. Eu o máximo que tive com o meu pai foi ir ver com ele o filme Rapa Nui com o Keaunu Reeves. E passou metade do filme a ressonar loooooool loooooooooooooooool loooooooooooool looooooooooooooool looooooooooooooooooooooool loooooooooooooooooooooooooooooooool loooooooooooooooooooooooool e viagens só mesmo aqui ao lado a Madrid para negociar 2 dias com uns chineses. E mesmo assim passou grande parte enfiado no hotel, e só se lembrou de ir ao Escorial quando eu já o tinha visitado e ia pra o Dona Sofia ; )))

Fora-de-Lei disse...

noiseformind 3:07 PM

Isso é uma armadilha. Cuidado que a PJ anda em cima do pessoal que descarrega mp3 da Net à borliú. ;-))

noiseformind disse...

FDL,
Quem é que falou em descarregar mp3 à borlix??????? Desculpa mas eu estava APENAS!!!! a mostrar-vos a lista de albums dos Jethru Tull para que os que de vocês quisessem pudessem adquiri-los de forma totalmente legal numa fnac ou Valentim de Carvalho perto de vocês. Que mente perversa e criminosa a tua ; (((((( nós aqui somos todos pessoas de bem, i guess. Apesar do teu nick ser fora-de-lei ; )))))

noiseformind disse...

No entanto, INDIGNADÍSSIMO!!!!, e para evitar qq sombra da minha total boa vontade para com a SPA removi preventivamente o endereço, dado que poderia ser apropriado para utilizações menos lícitas, nomeadamente aquelas a que te preparavas para te entregar ; )))))

noiseformind disse...

Bons velhos tempos em que éramos todos presumidos como pessoas de bem : (((( agora qq gesto inocente é logo apropriado pelas mentes devassas gerais... uma lástima...

Fora-de-Lei disse...

noiseformind 4:31 PM

É assim que se vai crescendo. Nunca se sabe quando um qualquer fora-da-lei se aproveita da nossa generosidade... ;-))

noiseformind disse...

FDL,
Mas eu com a minha provecta idade já não sou deste tempo, creio demasiado nas pessoas. Os meus netinhos já não me deixam abrir a porta de casa a desconhecidos por isso mesmo, aparece sempre alguém à espera para nos roubar ; ))))))) até a Pó-lice

andorinha disse...

Boa tarde.

Júlio,
Gostei de peregrinar consigo.:)

Noise (4.10)
Cada um vai tendo a sorte que merece. Looooooooooooooool

Sara Veiga disse...

Mais um texto lindíssimo, carregado de sentimento e de vida.
Obrigada por estes bocadinhos.
Um bom fim de semana.

Vanda disse...

oh Prof o que me fez lembrar...era a Madame Monteiro e seus cãezinhos? como eu sentia pena dos pobres cães de tão domesticados e ridiculos, naqueles vestidinhos de organdin...o que eu gostava mesmo era da magia... tarde de gloria, quando me escolheram e me fizeram soltar do nariz e orelhas moedas enormes...que faziam um barulho unico ao cair num balde de inox, tipo balde de gelo...lembro-me de, depois, ter chegado a casa e frente ao espelho do roupeiro dos meus pais, ter tentado repetir a proeza...julgo que foi nesse dia, que descobri que a magia não era para todos :)mas só para alguns ;)

Foi bom tê-lo lido já nem me lembrava como tinha começado a busca da magia, na minha vida :)

Um beijinho e bom fim de semana para todos !

Moon disse...

Cumplicidades... Gosto!
Uma velharia muito cool...:)

P.S.
Professor,
que é feito da Gertrudes e do Sousa? Tenho saudades... Muitas!:)

Bom fim de semana!

CêTê disse...

"Aprendi, por exemplo, que uma boa obscenidade traduz, por vezes, respeito, alegria ou surpresa, e não insulto aos outros. Junta, não separa."- Bem verdade! Há tanta gente a falar eloquentemente obscenidades!!!

Ás vezes tenho saudades de andar á pedrada. LOOOL Ainda hoje a ver os meus filhos e os amiguinhos à volta da consola pensei sobre essas aprendizagens de rua: poderão os jogos virtuais substituir essas aprendizagens?

Sobre o espetáculo circense... bem a única domesticação que me fascina é a do género humano Lol (pela arrogância altiva)mas os trapézios e o seu nomadismo sempre me fascinaram. Se fosse princesa era bem capaz de dar em outra Stef! Nem tanto, nem tanto ;]]]]


Professor, realmente, (como alias refere no seu último livro)dá mesmo vontade de passar n-excertos em post-its. Deveria sair bem ua coisa desse género ;]]] tipo calendário!


Pois então... tenham um bom fds!

Pamina disse...

Boa noite.

"Do meu filho, para o meu pai, para os meus filhos."
Já repararam que a frase original ("Dos meus pais para os netos e bisnetos") tanto pode ter o sentido de dádiva como de viagem?

Algumas referências fazem parte também da mimha memória: o "Dia mais longo" visto com o meu pai e também comentado por nós dessa maneira, embora no nosso caso as idas ao cinema não fossem raras, pois iamos todos os domingos. "A Noiva" na voz soluçante do António Prieto e depois o filme, julgo que visto em férias, naquele tipo de cinema onde havia sempre um grupo de rapazes que gritavam umas bocas gozonas nos momentos mais emocionantes (nunca percebi porque é que a rapariga só casando com o médico é que se salvava). O Joselito nunca vi ao vivo, mas lembro-me de vários filmes dele. Curiosamente, também não me atraía muito. Era um miúdo. Eu, para aí com uns 12 anos, tinha um crush era pelo Gary Cooper:). E quanto a músicas, as primeiras preferências foram para o Cliff (para dançar agarradinhos "when the girl in your arms...").
Mais tarde, também o Chico, o Ferré, o Brel, o Regianni, a Barbara (quem se lembra dela?), Bob Dylan e Joan Baez...Uns alimentando o desejo de uma relação com o outro sexo diferente do que era então costume e permitido, outros a revolta contra a ditadura, acho que não posso dizer exactamente que a "sua música foi o pano de fundo sobre o qual se desenrolou a minha vida", mas estiveram muito presentes nela. Com o filho, a partilha é sobretudo da música clássica e do jazz.

Desejo a todos um bom fds.

Su disse...

proffff ....gostei de lê-lo e ops o que eu fiquei sabendo...desde fazer de conta que faz dieta, a fingir, a chamar os miguitos para o salvarem das tareia promeitidas, a achar que palavrões deixam de o ser dependendo do contexto (agora até ...), a pensar que é quase sempre um mero e bom espectador..o que eu fiquei sabendo ehehehehe

adorei ler, recordações, saudades, ternura, vivências e toda essa partilha...que me faz bem:))))sim pq afinal tem resmas de defeitos ( um pequeno exagero meu...já sabe como sou:))))ok imagina:)))))

jocas maradas de tempo, de muito tempo

Vera_Effigies disse...

A vida é este conjunto de vivências sãs. Somos um todo composto e indissoluvel.
Um abraço
MJ

A Menina da Lua disse...

Professor!

O seu texto mais uma vez é uma delícia:)

Jethro Tull tambem fez parte das minhas preferências musicais dos anos 70 e ainda conservo um LP em vinil...

E já que falamos de música , gostaria de avisar o maralhal de Lisboa que iniciou o festival de música "Rota dos monumentos".

Acabo de chegar dos Jerónimos onde decorreu o primeiro concerto com o programa "Stabat Mater" de Scarlati entre outras peças.
Este festival decorrerá durante todo o verão em monumentos especiais: palácios, castelos, ruinas, sempre com belíssimos programas e tocados ou cantados por solistas de primeiríssima qualidade internacional.
Entre os vários programas destaco a ópera "Dom Giovani" de Mozart a realizar nos dias 26 a 30 de Setembro nas ruínas do Palácio da Ajuda , que vão sofrer obras de adequação para o efeito.
Acreditem que vale mesmo a pena.

Boa noite para todos

Mimi Mareia disse...

mt bem! adorei.