quinta-feira, maio 04, 2006

Mais velharias.

Lutos (I)


Como todos, bebi a taça do horror que se viveu nas margens do rio Douro. Para além de angústias que não consigo imaginar, vi de tudo: estrangeiros gabando o heroísmo de mergulhadores que alguns de nós já decretavam, em surdina, incompetentes; políticos resistindo mal à tentação de usar tragédia e noticiários em proveito próprio; outros exibindo, dias depois, a sua ausência dos ecrãs que difundiam o drama, como se detivessem o monopólio do comportamento ético; jornalistas fazendo o seu trabalho com sóbrio respeito e colegas sôfregos, que se precipitavam, como aves de rapina, sobre a oportunidade única de fazer um “reality show” a preço módico (por momentos receei vê-los censurar as vítimas por não darem as respostas esperadas ou exibirem dor suficientemente espectacular); a arrogância de uma Comissão de Inquérito sem o tacto necessário para perceber que, apesar das diligências possíveis em Lisboa, mandava o decoro não exigir a um Presidente da Câmara o abandono das suas gentes em tal momento para demandar a “Capital do Império”; um Ministro assumindo responsabilidades, em País a isso tão pouco habituado que as reacções variaram entre o aplauso basbaque e a suspeita cínica ( “às tantas o gajo aproveitou o pretexto para se pôr a salvo e ter tempo para outras manigâncias” ); um Governo mobilizado em peso, o que se justifica e saúda, mas ainda mais sublinha a sua ausência – e a de outros! - no passado; a solidariedade dos meus irmãos galegos, calcorreando praias que também considero minhas, em busca das vítimas que o rio matou e o mar devolve; os versos de Rosalía mais presentes do que nunca: “Del rumor cadencioso de la onda/ y el viento que muge;/del incierto reflejo que alumbra/ la selva o la nube;/ del piar de alguna ave de paso;/ del agreste ignorado perfume/ que el céfiro roba/ al valle o la cumbre,/ mundos hay donde encuentram asilo/ las almas que al peso/del mundo sucumben”. Espero que a poetisa das nieblas tenha razão e o espírito de quem morreu encontre abrigo. A nós cabe guardar-lhes a memória para além do próximo “êxito noticioso”.
Uma palavra especial de orgulho e apoio para os colegas que se precipitaram para o local da tragédia - espera-os trabalho árduo. Ouvi, sem surpresa mas com agrado, um dos responsáveis chamar a atenção para a importância fundamental da escuta solidária, sem prejuízo de eventuais intervenções medicamentosas. Porque estão muito enganados os que imaginam ser possível apressar lutos à força de químicos, generosamente distribuídos à hora da refeição. As perdas, sobretudo as bruscas, inesperadas e estúpidas como estas, implicam uma adaptação que não pode ser confundida com olvido ou anestesia. O desaparecimento de um ente querido não se resume a outro golpe traiçoeiro da existência a vencer, confiando na sabedoria popular - “incha, desincha e passa”. Não passa. As pessoas morrem, mas não nos deixam. Laboriosamente, construímos para elas altares aconchegados, nas fotografias da cómoda ou em neurónios saudosos mas pacíficos.
Para essa paz, conviria encontrar os corpos que permitirão o choro de mãos dadas. Os rituais, religiosos ou não, e o apoio de quem dá um passo em frente para o que der e vier, ajudam as pessoas a fazerem a necessária viagem entre o estupor e a revolta iniciais e a reorganização dos seus quotidianos. O processo leva o seu tempo, diverso para cada um, mas é imperioso respeitá-lo.
Por isso os meus colegas ouvirão muito, receitando com parcimónia. Com essa postura ajudarão as pessoas a completar as tarefas do processo de luto, como as define Worden: aceitar a realidade da perda; experimentar a dor que provoca; adaptar-se a um meio de que o ente amado desapareceu; “guardá-lo” emocionalmente e seguir caminho. Com a saudade - mas também a força! - que a memória acarreta.

16 comentários:

andorinha disse...

Boa tarde.

Quem não se lembra da tragédia de Entre-os-Rios?
Lembro-me de ter ficado perfeitamente horrorizada com as imagens que passaram na televisão e também com o desrespeito pela dor humana que muitos jornalistas mostraram.
Espero que os psis que lá se deslocaram e acompanharam os familiares das vítimas tenham realmente tido uma escuta solidária e não simplesmente prescrito doses maiores ou menores de psicotrópicos.
"As perdas, sobretudo as bruscas, inesperadas e estúpidas como estas, implicam uma adaptação que não pode ser confundida com olvido ou anestesia".
Não poderia estar mais de acordo.

mtc disse...

Com a saudade - mas também a força! - que a memória acarreta.

...um beijinho

Fora-de-Lei disse...

É tudo verdade. Mas mais verdade ainda, é que já lá vão alguns 4 anos e ainda ninguém foi julgado. Pelos vistos, mais uma vez a CULPA irá morrer solteira...!

"Enterrem os mortos e tratem dos vivos", disse alguém - em Lisboa - em 1755. Já estamos no Século XXI e continua-se a não querer tratar dos vivos...

andorinha disse...

Fora de lei (8.00)
Tens toda a razão, neste país é o que normalmente acontece.

CLÁUDIA disse...

Boa noite Professor e Maralhal...

Só para dizer que foi um prazer enorme poder ouvi-lo esta tarde na RTP 1. Continua a ser um mistério (digno de um Poirot) a sua capacidade de cativar e prender as pessoas ao seu discurso sempre fascinante, humanamente enriquecedor e, ao mesmo tempo, imbuído de tanta simplicidade.
Incrível a forma como vai sempre "conversando" sobre a vida...
Fica aqui o meu muito obrigada por ter podido aprender mais um bocadinho consigo hoje. :)))

Beijinhos para todos! ***

CêTê disse...

Ainda não me tinha deitado na noite em que foram divulgadas as primeiras notícias da tragédia pela televisão. Era tarde e só eu que estava acordada. Lembro-me de ter apagado a televisão, de ter beijado os meus filhos e ter feito descer a densa cortina da amnésia induzida para adormecer. Consegui-o não sei como (?!) só de manhã partilhei a notícia.
Como todos os portugueses, segui as notícias, em choque. Seria mentira não confessar que também queria ver corpos a serem retirados… queria ver-lhe a expressão. Será nojento confessá-lo? Não partilharão muitos este sentimento? Não? Não todos da mesma forma nem pelas mesmas razões disso tenho eu a certeza.
Sempre que atravesso a ponte que me leva à praia recordo a tragédia de Entre-os-Rios e devo confessar que se tenho de aguardar em fila sobre ela com os meus filhos a bordo é perturbador. Tento abstrair-me mas o certo é que o “negrito” que tenho em mim (ou itálico- para ser mais fino e não estar a plagiar ;]) arquitecta os mais pormenorizados planos para pôr a salvo as crias. Escusado será dizer o que mais me perturbou do acidente…
Impossíveis não estalarem as crostas.
Ainda recordo os gritos da mãe, o pranto e a louca da avó, o alvoroço dias e dias a fio até o mar devolver o menino delas. E depois disso até sempre (amenizada pela chegada do meu primeiro filho que o destino quis que fosse uma cópia dele).
Como nos empatizamos com gente que nunca vimos!? O andar alucinado, os repentes de normalidade inesperados e desesperados. No olhar adivinham-se as alucinações premonitórias que amenizam as perdas.
Nunca mais a morte me doeu. Mas transporto um pavor profundo de o destino, como dizem os velhos se repetir e a ordem natural das coisas se repetir em mim. Vou preparando a partida dos que me são queridos ensaiando formas de os recordar- como quando em baixo da mesa adormecia a ouvi-los sem os ver até o sono me atraiçoar de mansinho. A mim resta-me a missão de viver com a arte que tem qualquer progenitora aos desencantos da vida, descartando com cara feia o que é azedo mas rindo às bandeiras despregadas da careta feita pelos outros e por mim.


PS- Professor, não preciso do recibo.

CêTê disse...

O professor desculpe mas olhe saiu... pensava que vinha só aqui gracejar mas o assunto mexeu comigo- "sorry"
Um abraço (tão cedo prometo não ocupar tantas linhas.)
até amnhã e bn!

Pamina disse...

Boa noite.

Faço minhas estas palavras da Andorinha(7.17):
"Lembro-me de ter ficado perfeitamente horrorizada com as imagens que passaram na televisão e também com o desrespeito pela dor humana que muitos jornalistas mostraram."

Não sei como se sentiram os familiares das vítimas. Se fosse comigo, o comportamento destes verdadeiros abutres teria certamente intensificado a minha dor. Num momento destes, naturalmente desejaria silêncio e sossego e não aquele circo. Outro aspecto que julgo teria sido de grande importância para que eu pudesse atingir uma pacificação interior é o do apuramento (rápido) das responsabilidades e punição dos culpados. Como sabem, nos Estados Unidos os familiares da vítima podem assistir à execução do condenado por esse homicídio. Ao ver este tipo de cenas em filmes, já me tenho perguntado como reagiria. Tenho a certeza, tanto quanto se pode ter a certeza duma coisa destas sem passar por essa experiência, que não quereria assistir à execução. Sou contra a pena de morte, por razões de princípio, e não creio que conseguisse suportar o triste "espectáculo" da matança a sangue frio de um ser humano, mesmo tratando-se de um assassino. No entanto, compreendo que certas pessoas só a partir desse momento consigam encontrar alguma paz.
Neste caso de Entre-os-Rios, quando se tornou evidente que o acidente não se tinha devido a causas puramente naturais (embora as chuvas pudessem ter contribuído para a queda da ponte), eu ter-me-ia sentido extremamente revoltada com a incúria dos responsáveis e não sei como poderia seguir para a frente e fazer o meu luto, sem que fosse reconhecida publicamente a sua culpa. Penso que isto seria até mais importante para mim do que o castigo em si. Mas, como diz o Fora de lei, já lá vão 4 anos...(acho que até devem ser mais). Sem esquecer que o processo quase foi arquivado!

b' disse...

Laboriosamente, construímos para elas altares aconchegados, nas fotografias da cómoda ou em neurónios saudosos mas pacíficos

pacíficos??
e quando chega a paz?

maloud disse...

Casal dentro de um carro com os dois filhos no banco traseiro: "Nós viemos de Setúbal, para ver tirar os mortos." A chuva caía torrencialmente.
É esta imagem que guardo da tragédia de Entre-os-Rios. Grande e solidário povo português!

Chinezzinha disse...

http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=4295374

Descobri outro dia uma comunidade Júlio Machado Vaz no orkut.
Quem quiser visitar é só usar o link que coloquei aí em cima.

Beijos e boa noite

Anabela

Fora-de-Lei disse...

Pamina 10:28 PM

"Se fosse comigo, o comportamento destes verdadeiros abutres teria certamente intensificado a minha dor."

Embora sem os querer inocentar, é bom que nos lembremos que esses (pseudo)jornalistas - os tais abutres - são meros peões na estratégia de guerra das audiências. Não vale a pena desperdiçarmos munições sobre os alvos errados ou sobre os elos mais fracos...

As ordens para "marcar em cima" vêm das direcções de informação das SICs, TVIs, etc, cegamente obedientes ao apetite voraz dos seus ditosos accionistas. E se houver "sangue" para mostrar em directo, tanto melhor...

Mas mais: se esses "jornalistas" quiserem preservar o seu emprego, só têm é que alinhar. Se não alinharem, há logo ali meia-dúzia de solidários camaradas de redacção ;-) dispostos a alinhar por eles.

A chamada velha-guarda do jornalismo português já era. E com ela foi-se a inerente qualidade jornalística e a ética profissional.

LR disse...

Depois da hecatombe, houve uma onda de restauros nas pontes por esse país fora. Lembram-se?
Pudera, tornou-se uma obsessão nacional.
Lembro-me que a cada fim de semana fora de portas atravessava uma do género: estrutura em ferro, sustentabilidade duvidosa, ferrugem e maus tratos à vista desarmada, diariamente sujeita ao êxodo de largas centenas de carros de e para os locais-dormitório.
E durante muito tempo suava frio em cada travessia, com as imagens do horror na cabeça.
Sempre que havia um engarrafamento que obrigava o carro a parar a meio do tabuleiro, começava intimimamente a contagem decrescente para saltar para fora e ganhar a margem sólida do Ceira.Nunca cheguei ao zero, mas andei lá perto...

Hoje que lembramos isto, também vale a pena perguntar:- Como está a fiscalização das pontes e viadutos no país? Parada? A andar? Sistemática ou pontual?
Mais do que as retaliações, preocupam-me as dúvidas sobre os efeitos que teve (ou não teve...) esta tragédia na cultura profissional dos organismos competentes. Na cultura de controlo das construções em geral.
Volta à baila a nossa completa impreparação para a segurança e prevenção, qualquer que ela seja.
E certo, certo é que, mesmo com o selo do Edgar Cardoso... não há ponte que resista sem um follow-up periódico.


Dos resultados imediatos já sabemos.
Mas que efeitos a longo prazo, pós-comunicação social, teve o dito acidente em quem de direito?

LUA DE LOBOS disse...

A autora Maria de São Pedro, a Papiro Editora e a Fnac têm o prazer de convidar V.Exas. a estarem presentes para o lançamento do livro GATO PEDRA no dia 19 de Maio, pelas 19.00h na Fnac - Cascais Shopping.

Vera_Effigies disse...

Como todos falaram, foi um acordar depois da catástrofe. O se... se... se... dos nossos políticos numa ulcera aberta em que se tornou o coração daquelas pessoas.
Memórias felizes tornadas recordação de dor e saudade.
Outras pontes aguardam pacientemente restauro. Vou falar das que conheço, em lista de espera, Rio Caldo. Não se devem tingir mais recordações felizes com laxismos e passar de bola. Há alternativa, mas urge fazer as obras, as pontes estão lá e os pesados não resistem. O Verão está aí o Gerês e S. Bento os autocarros de turismo, as filas de trânsito intermináveis. Remodelam-se pisos, a ponte está a precisar de obras e NADA! Em que pensará esta gente?!!!
O sonambulismo político é gritante.
Um abraço
MJ

Adelaide disse...

KNOCK...KNOCK... Posso entrar? Não venho falar da tragédia, nem pensar!!! Já sofri muito com o caso, e só de o ver na TV, e de o imaginar, Deus meu!!! Também não entro neste espaço para expôr a minha pobre e simples filosofia (ai de mim). Quero principalmente dizer-lhe, Sr.Professor MURCON, que muito me tenho rido com os meus botões por causa, precisamente, do MURCON. Gosto tanto de me rir, e rio-me tão pouco. Até parece que tenho medo de chorar logo a seguir (contagiada talvez por aquelo dito popular "canta que logo bebes"). Aproveito só para lhe dizer que sou do tempo daquela Senhora com voz doce, ampla, limpa (sem riscos), sonora e inesquecível que ambos muito bem conhecemos. Fica, portanto, a saber que eu podia ser sua mãe, ou quase... Mil desculpas por esta minha ousada intromissão. Não resisti. E, também , para quê resistir... Porque não aproveitar estes "lances", "vontades repentinas" que a vida nos dá tão raramente...

Parabéns pelo Blog e tudo de bom.

Maqira