sábado, maio 06, 2006

Lutos part two.

Lutos (II)


Falemos um pouco mais de lutos. Quando se iniciam? E vocês, muito lestos – ora adeus, doutor, é simples, quando alguém morre. Basta pressentir a tristeza ou ver a cor da gravata - o negro reina, dentro e fora. Poderíamos, de facto, caminhar por essa vereda, e olhem que declarar a morte do corpo não é tão simples como parece! Vejamos uma sentença do Supremo Tribunal de Massachusetts em 1977: “A morte cerebral ocorre quando, na opinião de um médico reconhecido, baseada nos critérios habitualmente aceites, houve uma paragem total e irreversível das funções cerebrais espontâneas e tentativas adicionais de ressuscitação ou a manutenção da vida assistida não conduziriam ao restaurar de tais funções”. Repararam? Longe vão os tempos da morte associada à falência de coração e pulmões, hoje em dia o cérebro guarda a vida como a ostra a pérola. Não se trata de um acaso, vivemos numa era em que a tecnologia permite à “máquina humana” manter o seu funcionamento em condições até há pouco inimagináveis. Albury diz que a morte já não é uma parte da vida como no século XIX, nem, como antes, a sua simples ausência. Pede-nos para imaginarmos um doente comatoso: passa a estar morto quando as técnicas actuais não permitem a reversibilidade do coma em que mergulhou. A decisão de assim o declarar não se baseia tanto na constatação de um facto como num prognóstico negativo apoiado na nossa impotência - no estado actual da ciência médica reconhecemos não poder fazer mais nada. Amanhã, o mesmo doente, nas mesmas condições, poderá beneficiar de técnicas que permitam a recuperação das funções cerebrais e assim escapar ao carimbo fatal que acarreta o desligar das máquinas. O avanço da tecnologia “decide” a localização da última fronteira, pelo que se torna problemático definir a morte como um acontecimento natural.
Qual morte? A biológica. E vocês de novo – pois existe outra? Sim, a social, e nem sempre as duas coincidem. Hertz chama-nos a atenção para o facto de a morte biológica anunciar o fim do organismo humano, enquanto a social traduz o ocaso da identidade da pessoa. Muitas culturas consideram-nas momentos de um processo de transição entre dois mundos, período em que amigos e familiares conhecem perfeitamente os rituais a desempenhar. Algumas tribos malaias enterram o corpo provisoriamente, até à realização, meses ou anos depois, de uma cerimónia definitiva. Entretanto “o falecido continua a pertencer mais ou menos exclusivamente ao mundo que acaba de deixar. Aos vivos cabe o dever de cuidar dele; duas vezes por dia até à cerimónia final…; trazem-lhe as refeições habituais”.
Neste casos a morte biológica antecede a social. O inverso acontece, por exemplo, na morte vudu, que surge por decisão de um feiticeiro cujo poder é reconhecido por todos. O fim biológico aparece como simples consequência secundária de tal facto, a pessoa já não pertencia ao mundo dos vivos (a medicina vem há muito especulando sobre os mecanismos fisiológicos envolvidos nestas verdadeiras “mortes por sugestão”).
Dir-me-ão que tudo se passa a longas horas de voo da nossa arrogante civilização ocidental. E no entanto, ao longo dos últimos anos, amiúde concordei com os avisos de colegas meus - empurramos certas minorias, como os seropositivos ou os idosos, para estatutos que configuram verdadeiras mortes sociais, dir-se-iam reduzidos à categoria de cadáveres ambulantes e envergonhados. Pairando num limbo doloroso, até que os corpos se juntem, com secreto alívio, a almas assassinadas por solidões nascidas de mãos alheias, que negaram a carícia solidária e correram a abrigar-se em bolsos miseravelmente amnésicos. Mesmo se prontos à ajuda monetária!, pedimos ao dinheiro passaporte para declarar a consciência alva e fugir das redondezas. Porque se o olhar não vê, o coração não sente? Nem isso, por mero egoísmo civilizacional.

9 comentários:

Rui Diniz Monteiro disse...

De certa forma, ao longo da nossa vida, poderemos vir a ter de fazer o luto da nossa própria morte social? Esta é um risco bem real no mundo de hoje, ninguém pode dizer que está livre disso, nem é preciso chegar ao fim da vida (Por exemplo, num divórcio, em que fomos socialmente considerados a parte claramente culpada, cria-se um certo vazio à nossa volta, para dizer o mínimo).

Em relação à morte física dos outros: eu não sei fazer o luto. Haverá alguém que saiba?

Julio Machado Vaz disse...

Xelim,
Realmente não partilho essa visão dos velhos e dos seropositivos. Manter a solidariedade por outros seres humanos nunca poderá ser definido como uma perda de tempo, mas sim como o mínimo a fazer para permanecermos...humanos:). E garanto-lhe que nos sobrarão horas e engenho para não descurarmos o abençoado desenvolvimento tecnológico. Erro é exigir dele soluções para problemas que lhe não dizem respeito.

Vida Involuntária disse...

Ó professor, excelente post.
Tiro-lhe o meu chapéu -o de Inverno e o de praia.
Vou fazer uma chamada no meu discreto blogue e vou apôr lá uma imagem bem rútila, simbolizando o sangue -por ora ainda rubro- que corre nas nossas veias até ao derradeiro segundo de vida.

Mas peço-lhe que fale de outros "lutos" quando puder. Aqueles em vida:

-quando se perde, não por morte, quem se ama.
-quando se perde confiança, inocência, infância.
-quando se descobre que não há Verdade, Justiça, etc
-Quando se perde a vista, o ouvido ou a faculdade de andar.

Tantos...tantos lutos...que só a Arte absorve e "descreve". E às vezes vence. Como o Surdo genial de Bona.
Abraço e obrigada

Vera_Effigies disse...

"(...)empurramos certas minorias, como os seropositivos ou os idosos, para estatutos que configuram verdadeiras mortes sociais, dir-se-iam reduzidos à categoria de cadáveres ambulantes e envergonhados. Pairando num limbo doloroso, até que os corpos se juntem, com secreto alívio, a almas assassinadas por solidões nascidas de mãos alheias, que negaram a carícia solidária e correram a abrigar-se em bolsos miseravelmente amnésicos.(...)"
Uma verdade sem contestação.

Infelizmente vivemos num mundo que, como disse ontem, perdeu a história e tudo o que a lembre é relegado a um segundo plano. Os sistemas políticos, por si só, condenaram as vidas sem produção activa a esse degredo. Apenas se valoriza a produção boa ou má. Apenas se dá valor a corrupção activa ou passiva. Uma educação de interesses e comodidades que se reflecte até nas próprias famílias e falo da velhice que é hoje uma exclusão social e familiar. Não sei se é mais degradante a velhice pobre ou de notoriedade:
- A primeira pela simplicidade dos descendentes e, como alguns diriam, "a pouca cultura"(e eu diria a muita moral), e falta de poder financeiro que padece com o sistema político. Reformas sem qualquer poder económico, saúde em hospitais S.A. ou nenhuma, medicamentos caríssimos falta de acompanhamento diário da assistência social por excesso de utentes ou por praticamente inexistente. Isto tudo em pessoas que ajudaram a manter o país com o produto do seu trabalho, e estão ainda hoje a pagar as reformas dos políticos na flor da idade. Falar de falta de dinheiro da segurança social quando se paga a políticos várias reformas é acumuladas (como dizem de vários trabalhos e eu diria gamelas). Adiante...
Os descendentes, contribuintes activos, vêem-se em situações de loucos. Esticam os vencimentos como elásticos de fisga e mesmo assim não têm poder económico para dar ao familiar idoso condições que desejam. Assim sendo, há noites de sono perdidas e horários a cumprir. Um sistema de faltas que foi de mal a pior para prestar assistência (se antes faltava e perdia o subsídio de refeição, hoje falta, e perde vencimento correspondente ao dia de trabalho.Em 15 dias por ano, era o mínimo em situações pontuais);
Por um lado o idoso que não tem condições para sobreviver sozinho, por outro o familiar que depois de muitos anos e no limite de forças é obrigado a dar um presente para arranjar vaga num Lar local que considera impessoal e frio para quem ama.
- Os idosos oriundos de famílias com notoriedade, vêem-se usados até ao limite das forças pelo nome que carregam e que fizeram brilhar, mas que continua a abrir portas e portões, apesar do cansaço que transmitem e do sossego que a idade pede.Por descendentes que só brilham com a luz do astro e são apenas poeira cósmica que gravita ao redor até que a luz se apague.
Entre ambas venha o diabo e escolha. Ganha esta pelo poder económico e perde pelo abuso exaustivo de parasitas.
Eu fico-me pela primeira com todas as carências que a possam carregar.
Uma sociedade que não imagina a dor de quem passou uma vida inteira a trabalhar e se vê privado de poder fazê-lo. O sentimento que se instala de ser um peso, monetário e de sacrifício, àquele que dedica a atenção, o carinho, e todos os cuidados necessários diurnos e nocturnos, já que, grande parte das vezes os restantes filhos ou familiares se tornam ausentes, criando-lhes assim a dor acrescida da saudade e um monologo contínuo de razões que não encontram para o sucedido.
Somos um país de idosos e cegos. Será o medo da velhice que os afasta do tema? Ou o pensar que nunca lá chegam?... Pelas estatísticas somos os próximos. Não há como fugir...

CêTê disse...

Fazemos o luto de quem amamos, no medo de os perdermos – dos terrores que acordam, passam para domínios mais conscientes.
Fazemos o luto de quem não nos ama.
Impõe-se o luto nas perdas inesperadas. Longo luto se nunca antecipado: longo e impeditivo de amar proximamente e as vezes para sempre se em relação ainda muito apaixonada. (e aqui tanto romântica se materna/ paterna).

Curiosa e´de facto a forma diferente como é feito o culto da morte no mundo! E nos animais? Uma fêmea macaca quando a cria morre continua a tratar da cria até se convencer que esta está morta- apesar de tudo indicar que o sabe desde o primeiro momento. Infelizmente os corpos sem vida são arrepiados num pudor que nem sempre se entende! “Recordar como el@ era!” – deveria caber a cada um optar. Os olhos deveriam poder ver (se o desejassem para apressar o luto) para não iludirem a alma.

Sobre as mortes descompassadas o sofrimento é outro e bem mais complexo.
Quantas vezes já fizemos o luto antes do enterro definitivo que alivia?

Fora-de-Lei disse...

Saber-se exactamente quando já é morte é tão melindroso como se saber se ainda não é vida. Mas seria importante que alguém conseguisse definir estes timings com precisão para que não se cometessem mais "crimes".

PS: o nosso país está cheio de mortes sociais... mortes cada vez mais prematuras !

Catarina disse...

Há mais "mortes" do que as que podemos imaginar. A maior tristeza é daqueles que se vêm a si mesos a morrer aos poucos, seja esta morte do corpo ou do espírito, causada por doença ou por outras perdas que nos desfazem por dentro.
Há muito a trabalhar, em termos psicológicos, neste campo que (quase) todos receamos abordar por o sentirmos demasiado próximo, ou demasiado ameaçador...afinal, amanhã podemos ser nós. Como canta a Mafalda Veiga, "sabes eu acho que todos fogem de ti paranão ver a imagem da solidão que irão viver, quando forem como tu(...)".
É responsabilidade de todos nós olhar a morte, as mortes, de frente, para podermos minimizar um sofrimento que a dada altura se torna quase inevitável.
E acabei por fugir do tema do luto... :s

Su disse...

li reli. belo texto
jocas maradas

noiseformind disse...

Para ser rigoroso eu diria que "luto" mesmo é o momento em que não há interacção com a coisa de que se faz luto. Podemos dizer metaforicamente que há um "luto" num casamento à medida que ele se aproxima do fim mas aí é um luto falso na medida em que os intervenientes estão DENTRO de um casamento. Enlutarem-se pode ser perfeitamente uma escolha para deixarem a cosa cair de madura (ou podre).

Em relação ás mortes sociais é uma perda diferente daquilo que julgo ser um luto. É uma saudade com a noção de que o bem-estar não é reproduzível, a ideia que transpiraste já por duas vezes em livro de que "a sua morte separa-nos, a minha morte não nos unirá". Isso é especificamente um luto, um enlutamento.

O resto de que falas são tristezas, apartamentos, decepções. Mas lutos não Boss ; )))))))