sábado, outubro 25, 2008

Olhares.

Quase todos os professores com muita "estrada" vos dirão o mesmo - os críticos mais severos acoitam-se dentro de nós. Porque os anos ensinaram rotinas que maquilham a falta de inspiração e o consequente triste debitar da matéria, sem chama que desperte a curiosidade dos alunos. Mas aula acabada, espelhos íntimos não mentem - fomos medíocres e não medianos. E no entanto... Quinta-Feira, durante o Curso que ministro em Serralves, vi aparecer um dos meus filhos. E ao gosto da sua visita deu a mão um receio agudo de o desiludir. Bautista, como tantas vezes aqui lembrei, aponta a obscenidade de um filho morrer antes dos pais, mas além desse "drama absoluto" existem outros, comezinhos - sentem uma ponta de orgulho ao ouvir-nos?; desejariam voltar se constassem na pauta?; dirão um dia que "era bom aprender com o velho"? A lenda familiar responderá um dia a essas perguntas. Quando a minha presença e a gentileza deles já não influenciarem as respostas:).

domingo, outubro 19, 2008

Um homem que sempre fala de aceitação:).

"Para o Cardeal Carlo M. Martini, a Igreja deve trabalhar no desenvolvimento de uma nova cultura da sexualidade e da relação, pois esta encíclica (Humanae Vitae) é, em parte, responsável por muitos já não tomarem a sério a Igreja como interlocutora ou como mestra. Aos jovens dos países ocidentais, já quase não lhes passa pela cabeça recorrer a representantes da Igreja para os consultar sobre questões de planificação familiar ou de sexualidade. Muitas pessoas afastaram-se da Igreja e a Igreja afastou-se dos seres humanos. Ficou muito prejudicada com esta atitude.
Este Cardeal deseja uma nova encíclica, na qual o magistério diga algo de positivo sobre a sexualidade. Ele próprio faz sugestões e aponta um método de diálogo para que, nesse documento, não sejam dadas respostas a perguntas que não existem.
No Dia das Missões, é importante ter presente a advertência de Jesus: não adianta percorrer mar e terra só para fazer prosélitos. É preciso, antes de mais, fazer da Igreja um lugar habitável para mulheres e homens, jovens e adultos, sejam eles hetero ou homossexuais. Toda a realidade humana é ambígua. A sexualidade também é terra de evangelização."

Frei Bento Domingues, Público, 08/10/19.

segunda-feira, outubro 13, 2008

Um homem rigoroso.

Morreu assim - envelope na mão, sorriso nos lábios, recém-arrancados aos dela. Que não chamou ninguém. Ou sequer as lágrimas, há muito previstas... O som do papel rasgado, em pano de fundo o zumbido da tecnologia médica, alheia ao aparecimento da linha isoeléctrica nos visores. O cartão de visita, amarelecido e privilegiado, ele nunca os usara. Dizia que os clientes mais jovens levavam os seus contactos nos telemóveis e os da velha guarda em guardanapos dos tascos favoritos de Matosinhos. A data; sublinhada - trinta anos atrás... E o texto: "Minha querida, é chegado o momento para fazer e gabar - com rigor inatacável! - uma profecia arriscada: serei feliz contigo para sempre."
Ela sorriu. Não seria o tempo que lhe restava, opulento ou anémico, a impedi-la de o dizer, que se danasse o rigor (mortis) - "Eu também, amor". E regressou aos lábios dele.

sexta-feira, outubro 10, 2008

A politicazinha...

SEM CUJO CONCURSO Fernanda Câncio

Nos últimos 26 anos, em Portugal, os homossexuais passaram de criminosos (até 1982) a deficientes e doentes mentais (até 1999), para verem em 2001 reconhecida a igualdade na união de facto e em 2004 especificamente interdita, na Constituição, a sua discriminação. Poucas lutas pela igualdade na lei foram tão rápidas nas suas conquistas. Falta a última batalha, a do casamento. E quem se indigna com o facto de até há muito pouco tempo um homossexual ter sido na lei portuguesa um criminoso e um doente não pode ignorar que a proibição do casamento é resquício disso.Hoje vai-se votar o casamento das pessoas do mesmo sexo no parlamento. É um dia histórico. Mas o partido da maioria vai votar contra, alegando que não está a votar contra o casamento das pessoas do mesmo sexo mas contra "o oportunismo do BE e de Os Verdes". Entendamo-nos: é claro que BE e Verdes querem entalar o PS. É também claro que o PS correu a entalar-se. Se crê na sua justificação, o PS só podia abster- -se, dizendo: "Não podemos votar a favor por não nos considerarmos mandatados eleitoralmente para tal, mas pela mesma razão não podemos votar contra." Vota contra, porém, alegando "juízo de oportunidade", enquanto o presidente da bancada, Alberto Martins, assegura ser não só a favor do casamento das pessoas do mesmo sexo como ver nele uma questão de "direitos fundamentais". Martins e companhia votam, portanto, contra a Constituição. E contra todos os cidadãos cujo direito à igualdade é prejudicado pelo não acesso ao casamento. E esta hecatombe de princípios para quê? Para ensinar o BE e os Verdes a respeitar o PS, "sem cujo concurso dificilmente uma alteração deste tipo jamais se fará". É uma justificação tão boa como as outras, as do costume: "O assunto não é prioritário"; "O País tem tantos problemas, o mundo está numa crise económica, o que é que isso interessa?"; "Já não se pode ouvir falar disso"; "Não houve ainda debate suficiente". Lógico, não? Não houve debate suficiente mas já não se pode ouvir falar disso. Durante uma crise económica não se pode falar de direitos das pessoas (falar de direitos das pessoas deve prejudicar a resolução das crises económicas). E, o mais lógico de tudo: se estamos a falar de homossexuais, como é que isto pode ser prioritário? Pois é. O nada prioritário tema do casamento das pessoas do mesmo sexo está em debate na sociedade portuguesa desde as legislativas de 2005, foi focado nas presidenciais de 2006 e é periodicamente tema de colunas de opinião. Causa discussão acesa no partido da maioria. Mas não mereceu até hoje um único grande debate no horário nobre das TV portuguesas. Nem o Prós e Contras, do canal público, lhe pegou. Se não é prioritário não dá debate, se não é debatido não se torna prioritário. Podia ser a lógica da batata, mas é mesmo a da fobia. Tão fóbica e pouco lógica que, mesmo "sem ampla discussão", 42% dos portugueses - segundo sondagem da Católica - já são a favor do casamento das pessoas do mesmo sexo. Não é ainda a maioria, não; é só grande parte do eleitorado do PS. Oooops.

Jornalista - fernanda.m.cancio@dn.pt

sexta-feira, outubro 03, 2008

Melancolia.

A ausência de liberdade de voto na bancada do PS, no que ao casamento de homossexuais diz respeito, não me surpreendeu, o que é triste e preocupante. Admitamos que ela existia, qual seria o resultado prático? Uns votariam contra por convicção; outros por considerarem necessário um debate social prévio - posição que respeito - e o tema não constar do programa do partido na campanha eleitoral; outros por saberem que "lá em cima" esperavam que o fizessem; outros refugiar-se-iam na abstenção; e outros votariam a favor. Alguém acredita que o projecto de lei passaria? Assim, nem sequer por razões da famosa real politik a decisão se justifica. Quanto a "não andar a reboque de ninguém" é um argumento inacreditável, pressupõe não apoiar as boas - ou más! - ideias dos outros pela simples razão de virem..., dos outros! Estranho conceito de democracia:(.
Para alguém da minha geração, foi especialmente doloroso ver Alberto Martins como rosto e voz do processo, pela sua importância no imaginário de tantos universitários. Das catacumbas da minha lúcida cobardia, consegui às vezes imaginar-me capaz de pedir com ele a palavra, para escândalo horrorizado e fugitivo de um Presidente da República filho da mais despudorada batota eleitoral; mas recuava perante a simples evocação das consequências, era do contra dentro dos limites do meu comodismo burguês. Ficou a admiração grata pelo seu acto, pois não se tratou de simples gesto.
Por isso busco refúgio pobre na convicção de que, passados quarenta anos, este episódio lhe deixa um sabor amargo em boca e memória. E reforço outra, que norteou ao longo de uma vida a minha intervenção política e cívica - nunca poderia ser um homem de partido. Considero obscena a disciplina de voto em matérias como esta, a lealdade não pode viver à custa do suicídio da consciência.