segunda-feira, outubro 27, 2014
sábado, outubro 25, 2014
A própria consciência...
Igreja,
sexo e família
por ANSELMO BORGESHoje
DN.
Aí está um tema sobre o
qual a Igreja tem imensa dificuldade em falar. À partida, porque é em si mesmo
difícil. Mas a dificuldade aumenta na Igreja, porque, para lá de outras razões,
que talvez Freud ajudasse a explicar, está entregue ao papa, a cardeais, bispos
e padres, que devem ser celibatários e não têm propriamente família. Mas que o
tema é relevante, mostra-se, por exemplo, pela enorme importância dada pelos
media ao Sínodo que lhe foi dedicado, cuja primeira fase - segue-se um ano de
reflexão, que culminará na nova assembleia sinodal, em Outubro de 2015, e na
Exortação final do Papa Francisco, nos inícios de 2016 - concluiu no domingo
passado.
Quem foram os vencedores
e os perdedores? Há quem insinue que o Papa Francisco não conseguiu levar
adiante o seu projecto. Não creio nessa tese. É preciso perceber que se trata
da primeira fase do Sínodo. Depois, sobretudo, criou-se um clima e abriram-se
portas que já não é possível fechar. Votou-se um texto que, se em relação aos
divorciados e aos homossexuais, não obteve os dois terços necessários para a
aprovação, venceu, mesmo aí, por forte maioria, continuando, portanto, o
debate. Que haja tomadas de posição diferentes, é sinal de vida, embora a
Igreja não esteja habituada a este estilo de abertura democrática. Teve alto
significado o facto de o Papa ter mandado votar os vários pontos e publicar os
resultados, para que haja transparência e cada um assuma as suas
responsabilidades.
A Igreja não abdica da
doutrina, mas esta tem de ser aplicada na vida real, atendendo a dois
princípios: o da compreensão e misericórdia e o da não exclusão. Penso, assim,
possível antecipar, em termos gerais, o que se seguirá.
1. O casamento enquanto
união em amor fiel e estável por toda a vida, aberta à procriação, lugar
privilegiado de apoio mútuo e para a educação dos filhos, é um ideal de que se
não deve abdicar e pelo qual vale a pena bater-se. Mas, por outro lado, o
divórcio é uma realidade que não está em vias de declínio, e por razões
múltiplas. Há situações e situações. É inegável um ambiente de hedonismo, de
sociedade "líquida" e recusa de compromissos perenes. Pense-se também
que há 100 anos a esperança de vida na Alemanha era à volta de 35 anos, sendo
hoje de mais de 70; no tempo de Jesus, era à volta de 28 anos. Depois, se
tradicionalmente parecia que os casamentos aguentavam mais, isso também se
devia ao facto de as mulheres terem de aceitar ficar na penumbra e por vezes
quase escravizadas, o que felizmente hoje não aceitam. E há aquele pensamento
de Pascal, na linha da identidade processual e narrativa da pessoa: "O
tempo cura as dores e as querelas, pois mudamos: já não somos a mesma pessoa.
Ele já não ama esta pessoa que amava há dez anos. É isso: ela já não é a mesma,
e ele também não. Ele era jovem, ela também; ela agora é totalmente diferente.
Talvez ele ainda a amasse se ela fosse como era."
De qualquer modo,
pergunta-se: se, divorciados, recomeçarem a vida em amor, em dignidade, se
tiverem filhos que se esforçam por educar humana e cristãmente, poderá a Igreja
negar-lhes a participação plena na vida eclesial, incluindo a comunhão?
2. Será reconhecido o valor dos
casamentos civis e também das uniões de facto e da coabitação, que até poderão,
nalgumas circunstâncias, desembocar no sacramento do matrimónio. Quantos sabem
que só a partir do século IX foi exigida no casamento a presença de um padre e
só no século XII se começou a definir o matrimónio como sacramento?
3. Quanto à homossexualidade, não
se espere o reconhecimento do casamento de pessoas do mesmo sexo. Como já aqui
expliquei, a linguagem eclesiástica não fala em casamento, que vem de casa, mas
em matrimónio, que vem de mater (no genitivo, matris), mãe, o que significa
que, segundo a Igreja, a abertura à possibilidade da procriação é constitutiva
do casamento. Mas a linguagem mudou: os homossexuais "devem ser acolhidos
com respeito e delicadeza; deve ser evitada qualquer marca de discriminação
injusta". Será dada especial atenção às crianças que vivem com pessoas do
mesmo sexo.
4. Evidentemente, será necessário
rever a questão da contracepção, o que implica rever o pressuposto de uma
natureza fixa e imóvel, centrada na biologia. A sexualidade humana não se reduz
ao biológico e é próprio da natureza de o homem ser histórico e cultural e
intervir artificialmente, com responsabilidade, na natureza.
5. Em todos estes pontos vale um
princípio tradicional, retomado por Bento XVI, quando era professor:
"Acima do Papa encontra-se a própria consciência, à qual é preciso
obedecer em primeiro lugar; se fosse necessário, até contra o que disser a
autoridade eclesiástica." Não vale tudo, mas, para lá da moral reduzida a
normas e proibições, é preciso educar para a autonomia, para a liberdade na
responsabilidade e dignificação.
sexta-feira, outubro 24, 2014
quinta-feira, outubro 23, 2014
Ele tem razão...
DENTRO DO GÉNERO
O
sexo e a idade
por JOÃO TABORDA DA GAMAHoje
DN.
O país tomou de ponta um
trio de juízes do Supremo Tribunal Administrativo (STA) por terem dito que sexo
aos cinquenta tem menos importância do que sexo aos vinte. Foi logo uma orgia
comentarista, e de todos os cantos saltaram casanovas grisalhos ofendidos na
sua virilidade e mulheres juristas a dizer que bom bom é agora depois da
menopausa, sem limites nem tabus (nota mental: não faltar ao jantar dos 40 anos
do meu curso de Direito, em 2040).
Na decisão do STA há
algo mais grave do que a questão da idade: uma desvalorização subconsciente da
sexualidade feminina aliada a um forte preconceito social. O sexo não vale
menos porque a vítima tem cinquenta anos, o sexo vale menos porque a vítima é
mulher. E empregada doméstica.
Sexismo nos tribunais
portugueses não é coisa nova. Na semana passada assinalaram-se os 25 anos da
mais abjeta decisão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), em que um juiz Tinoco
culpa duas jugoslavas por terem sido violadas no Algarve. Afirmou que as
ofendidas, "raparigas novas mas mulheres feitas", "muito
contribuíram" para a violação ao virem para a estrada pedir boleia
"em plena coutada do chamado "macho ibérico"". As moças
tinham de ter "previsto o risco que corriam", "pois a atração
pelo sexo oposto é um dado indesmentível e por vezes não é fácil
dominá-la". Sabiam ao que iam, disse Tinoco, até porque no Algarve
"abundam as turistas estrangeiras habitualmente com comportamento sexual
muito mais liberal e descontraído do que o da maioria das nativas" - a
culpa é, claro, da portuguesa nativa que trata pouco do macho marido e apenas
na posição do missionário, de terço em riste, a pensar nos pares de meias que
tem de cerzir quando acordar. Para Tinoco, as bifas não só tiveram o que
mereceram como até gostaram do que tiveram - "as duas ofendidas deviam ser
já raparigas de comportamento sexual experiente e desinibido", umas
sabidonas, já que uma delas "rapidamente deixou de oferecer resistência à
violação e, no fim, até elogiou a forma e o ardor viril" do violador.
Gostas pouco, gostas. Tinoco não terminou sem aventar que, "possivelmente,
outras formas haveria, contudo, de ele manter relações sexuais com uma ou, até,
com as duas ofendidas". Com mais jeitinho, tinhas papado as duas.
Nas bodas de prata da
cavernícola decisão Tinoco, o problema não é o que os juízes do STA no mês
passado disseram sem pensar sobre o sexo e a idade, mas o que pensaram sem
dizer sobre o género e a condição social. Claro que os juízes do STA não são
frustrados sexuais, como se lê por aí. Acreditam, como nós, na sexualidade
sénior, e que a chama não murcha aos cinquenta. Vivem, como nós, num mundo onde
há até cada vez mais sexualidade sénior, tal é a fartura de ajudas disponíveis
no mercado, desde o Viagra (para ele) aos romances do Sousa Tavares (para ela).
Perante um caso com algumas inconsistências de prova e deficiências de
fundamentação, os juízes quiseram reduzir a indemnização e pegaram, entre
outras coisas, na idade e número de filhos. Tudo isto mais não é do que a face
visível de um preconceito sobre o género e a condição social, que fica aliás
muito claro se olharmos a outros casos.
Em 1998, um
"administrador de empresas" retirou a próstata na sequência de uma
biopsia ter revelado cancro. Afinal não havia cancro nenhum e, além do susto, o
"administrador" ficou incontinente e impotente. Ao senhor
"administrador" "com quase 59 anos", o tribunal atribuiu,
em 2008, 224 500 euros de indemnização. Ainda há três meses o STJ fixou em 100
000 euros a indemnização a um homem "social e financeiramente bem-sucedido
na vida" que, num caso idêntico, ficou incontinente e com as ereções reduzidas
a 60%-70%. Tinha 55 anos. Quando uma vida vale em média 65 000 euros nos
tribunais, a filosofia judicial é clara: antes morto que mortiço. Os tribunais
sabem bem o valor do sexo depois dos cinquenta, mas sobretudo para homens que
estão bem na vida. Na cabeça dos tribunais, um homem rico e uma mulher pobre
são mesmo pessoas de sexo diferente.
Na decisão do STA do mês passado,
o preconceito social nem está tão disfarçado quanto isso. Basta seguir este
raciocínio: "Não se tendo provado que a Autora tivesse ficado incapaz de
realizar todas as lides domésticas" e, tendo em conta "as idades dos
seus filhos, a mesma apenas teria de cuidar do seu marido". Logo, é para o
Tribunal "forçoso concluir que a mesma não teria necessidade de uma
empregada a tempo inteiro". Uma empregada doméstica com empregada
doméstica? A tempo inteiro? Além de marota, és preguiçosa.
Há muito que se estuda,
infelizmente não por cá, o efeito do estereótipo e do preconceito sexual e
socioeconómico nas decisões judiciais: involuntariamente, os tribunais decidem
de forma diferente casos muito semelhantes apenas pelo simples facto de as
vítimas serem homens ou mulheres, ricos ou pobres. E foi este enviesamento que
esteve por trás da desajeitada afirmação sobre o sexo depois dos cinquenta.
Os tribunais portugueses já não
escrevem com todas as letras que uma estrangeira merece e até gosta de ser
violada na coutada de machos insaciados por nativas inibidas. Mas são vítimas
de um inconsciente preconceito sexista e social não menos perigoso.
quarta-feira, outubro 22, 2014
terça-feira, outubro 21, 2014
quinta-feira, outubro 16, 2014
quarta-feira, outubro 15, 2014
segunda-feira, outubro 13, 2014
Frei Bento...
O frade dominicano continua a ser uma voz incómoda na
Igreja e não tem pudor em dizer que o sexo não serve só para procriar
Trouxe a Teologia para os jornais, há mais de 20 anos
e numa época em que a Igreja ainda andava às voltas com o debate sobre a
evangelização nos meios de comunicação. Frei Bento Domingues fez 80 anos em
Agosto e continua a ser uma voz incómoda no clero português. Defende a
ordenação de mulheres, a comunhão de divorciados e não tem pudor em afirmar que
o ser humano é sexual. "Somos sexo em tudo", diz. Recentemente foi
homenageado na Gulbenkian, lançou mais um livro com as crónicas que assina no
"Público" desde 1992 e, apesar de ser frade dominicano a viver num
convento no Alto dos Moinhos, não se esconde atrás da clausura. A conversa com
o i começou pelo sínodo que está a acontecer no Vaticano:
bispos de todo o mundo debatem até dia 19 as novas formas de família e a
sexualidade. O monge cronista não tem medo de afirmar que "o sexo não é só
procriação" e, pelo meio, critica os interesses instalados na política e
no mundo empresarial: "Isto não é mundo que se apresente".
A Igreja está a debater a realidade das
novas famílias. O que poderá sair, em concreto, deste sínodo?
Há um efeito muito concreto que já teve: dar a
palavra.
Ouvir os católicos?
Sim. É evidente que o modelo é coxo, porque a reflexão
está centrada só nos bispos e foram convidadas poucas famílias. Mas só o facto
de existir receptividade para abrir a discussão já é positivo. Há muitas
coisas, sobre a ética sexual e reprodutiva, que estão entorpecidas e encalhadas
desde Paulo VI. E que fazem com que os cristãos e a própria Igreja deixem de
ter algo a dizer sobre um domínio essencial da vida humana que é a sexualidade.
É preciso que a Igreja faça uma redescoberta no campo da sexualidade.
Concorda com a comunhão de divorciados?
Claro que sim. Então podem ir à missa, mas não podem
comungar? É como se eu convidasse uma pessoa para jantar - porque o modelo de
eucaristia que Jesus escolheu foi uma ceia, é essa a simbólica da eucaristia -
e não a deixasse comer.
Isso não faz qualquer sentido.
Mas há a quebra de um compromisso que, segundo a Igreja, seria
para toda a vida.
Muitos defendem que se rompeu uma aliança. Mas há situações
irreversíveis, pessoas que já não voltam ao companheiro anterior porque não é
possível e que entretanto refizeram as suas vidas. Essas pessoas, agora, não
precisam de ser alimentadas? A fé e a caminhada delas não necessita de ser
acompanhada?
No Evangelho de São Mateus lê-se que o que Deus uniu não pode ser
separado pelo homem.
Olhe lá uma coisa... a eucaristia, desde o começo, não é um pedido
de perdão? A própria consagração não é pela remissão dos pecados? Chega-se ao
pai nosso e não se pede perdão e as pessoas não se reconciliam? Qual é a
palavra que, na Bíblia, é mais importante para Deus? É a misericórdia. Deus
manifesta o seu poder pelo perdão e pela misericórdia. Jesus foi criticado, no
seu tempo, por atender as pessoas que tinham estragado as suas vidas e por
andar com aqueles que estavam classificados como pecadores. É com eles que
Jesus come.
Relativamente aos homossexuais, a Igreja defende que devem ser
acolhidos, desde que sejam celibatários e não pratiquem a homossexualidade.
Esta concepção poderá mudar?
Tem-se dado alguns passos. Ainda me lembro, e não foi assim há
tantos anos, de os homossexuais serem clandestinos. E não era só na Igreja, era
na própria sociedade. Cheguei a atender pessoas, na confissão,
angustiadíssimas. Julgo que também neste campo a Igreja precisa de dizer o que
é autenticamente humano e acolher bem as pessoas. Mas que não se faça da
homossexualidade um cartão-de-visita. Disso eu não gosto. Essas coisas do
orgulho gay e afins. O orgulho que deve existir é o de sermos humanos uns com
os outros. Uma outra coisa que me parece importante é a questão das uniões de
facto. Todos os padres que trabalham nas equipas de preparação do matrimónio
sabem que a maioria dos casais já vive em união de facto antes do casamento.
Essas pessoas estão em pecado?
O casamento é uma realidade que vai sendo - o gerúndio é
propositado - e há um momento em que o casal decide fazer a grande festa do
grande compromisso.
Estas questões são fenómenos das sociedades. E às vezes até há muitos
divórcios porque não houve uma descoberta verdadeira antes do matrimónio e a
seguir ao casamento as pessoas percebem que não funciona. Viver juntos não é
garantia de que o relacionamento depois bata certo. Mas a Igreja e os cristãos
- porque a Igreja são os cristãos, servidos e ajudados pela hierarquia - tem de
debater estas novas realidades. Sem tabus. A Igreja não pode ser um conjunto de
tabus. Muitas pessoas fazem determinadas coisas porque dizem que são um
mandamento de Deus. Mas Tomás de Aquino disse: se eu faço uma coisa só porque
ela foi mandada por Deus, talvez eu corra o risco de estar enganado. Talvez não
seja Deus a mandar, talvez tenha sido eu a inventar. Eu só sou livre e
verdadeiramente pessoa humana se tiver consciência de que faço uma coisa porque
compreendo que ela é boa e evito outra porque percebo que é má. Jesus resumiu,
aliás, todos os mandamentos em dois: amar a Deus e ao próximo.
O Papa Francisco escreveu também sobre a hierarquia das verdades.
Sim. É preciso compreender, mesmo nos nossos credos e catecismos,
o que é principal e o que é secundário. Ora o que tem acontecido é que o
secundário tem ocupado o espaço todo.
Quando falava, há pouco, da necessidade de a Igreja fazer uma
redescoberta da sexualidade, queria dizer exactamente o quê?
Todos os homens e mulheres são sexuais e o episcopado também
nasceu de famílias. O problema é descobrir a importância da sexualidade na vida
humana. O sexo não se trata só de procriação. A relação entre um homem e uma
mulher não é só para ter filhos.
Então não há nada de errado com o prazer?
O prazer é essencial à vida humana. As pessoas cozinham bem
porquê? Para terem prazer naquilo que comem. A questão do prazer é essencial à
vida humana. Outra coisa completamente diferente é a anarquia dos sentidos.
Uma sexualidade desordenada.
Anárquica. Isto agora apetece-me, dá-me prazer e eu faço, mesmo
que fazê-lo implique uma desgraça para a outra pessoa.
Isso é egoísmo, não é prazer. E esse egoísmo pode existir na
sexualidade: quero que o outro me dê prazer, mas não quero dar prazer ao outro.
É dominação. O prazer é a comunhão de toda a sensibilidade, mas a sensibilidade
humana é também intelectual. Não é um afecto desligado. O ser humano é todo ele
sexual. Somos sexo em tudo. As mulheres de uma maneira, os homens de outra e os
dois para serem a alegria um do outro. Essa descoberta, redescoberta do valor
da sexualidade, tem de ser feita. Não podemos andar a olhar para a relação
sexual como um pecado. Nós não somos anjos. E o problema da sexualidade é um
problema de antropologia. É o descobrir do ser humano nas suas múltiplas
facetas. Não podemos pensar no prazer só em termos de pecado.
O que diz aos jovens
católicos que lhe confessam que são sexualmente activos apesar de não serem
casados?
O que é que lhes hei-de dizer?
Não vou dar lições. O problema não é esse. O problema é perceber se o jovem ou
a jovem têm uma vida sexual desorganizada, se andam a magoar outras pessoas, a
fazer promessas que depois não cumprem. Aí, sim, está o pecado. O pecado na
sexualidade, em jovens ou em adultos, é muitas vezes as pessoas servirem-se da
sedução para enganar o outro e ter apenas umas horas de prazer.
A ideia de virgindade no casamento
está, portanto, ultrapassada?
Não é só ultrapassada. O problema
é que se fez da virgindade, que é uma questão biológica, um problema ético. A
moral não é um tratado de fisiologia ou biologia. Uma das coisas que eu acho
que a Igreja tem de rever é ajudar os casais, os jovens e os grupos a
compreender uma coisa simples: tenho de ser responsável pela minha vida sexual.
Faço sexo para dominar o outro ou para encontrar uma pessoa para fazer caminho
com ela? Porque, às vezes, as pessoas tentam e não calha ficarem com essa
pessoa. Mas ninguém deve sair magoado disso. O que eu julgo que é falta de
ética são as conquistas apressadas e egoístas: acho gira aquela miúda ou aquele
rapaz e vou passar uns tempos com ele ou com ela só para me divertir.
Isto é que é necessário evangelizar.
Mas a questão da virgindade é importante para a Igreja. Jesus,
diz-se na oração, foi concebido sem pecado.
Sim, mas repare que no Evangelho isso não é dito. O que os
evangelhos da infância pretenderam transmitir é a ideia de que se este homem foi
tão excepcional na sua vida adulta, essa excepcionalidade era de nascença. E
construíram-se narrativas. Mesmo as genealogias são teológicas, são
interpretações. Para no final se concluir que Jesus é fora de série.
E que Maria é, também, fora de série.
Maria é descoberta depois. E tiveram de se encontrar narrativas. O
pior que aconteceu aos evangelhos da infância foi transformá-los numa questão
biológica. Quando o que queriam dizer é que Jesus não era mais um na série
humana. Era tão de Deus que foi logo um fruto do Espírito Santo. Mas as pessoas
fizeram leituras hermenêuticas desses textos de tipo biológico. A linguagem
toda dos evangelhos é uma linguagem simbólica, não é uma linguagem factual. Há
factos, histórias e interpretações simbólicas.
Então Maria e José tiveram sexo?
Podem ter tido ou não. Para mim, se tiveram não há problema
nenhum. Maria aparece como uma mulher totalmente dedicada a Jesus e que não o
entende. Teve de fazer muitas transformações na sua vida, de entrar na loucura
do seu filho e aparece, também ela, no meio dos discípulos à espera do
Pentecostes. Maria tem de se tornar cristã, discípula do seu filho. Nos
evangelhos da infância não é assim... Maria vai-se habituando à loucura do seu
filho. Esta é uma imagem que acontece também nos textos do novo testamento com
as mulheres. As mulheres nos evangelhos nunca pedem nada e acompanharam os
discípulos quando começaram a andar junto da cruz, foram ao sepulcro fazer as
celebrações que se faziam aos mortos e é a elas que Jesus aparece.
Mas na Igreja o papel das mulheres é varrer e pôr flores.
É o grande problema. Porque é que as mulheres não podem ser padres
e bispos? Como houve estas sociedades patriarcais ao longo dos séculos... A
luta das mulheres conseguiu muitas transformações na sociedade, mas na Igreja
isso não aconteceu porque se disse que era contrário ao mandamento de Deus.
E não é nada! A mudança de mentalidades é difícil. A vida humana é
uma vida longa. A nossa vida, individualmente, é que é muito curta. O que eu
acho é que cada geração deve abrir novas possibilidades às seguintes e não
fechá-las. Há pessoas que querem sempre fechar o caminho: isto é irreformável,
isto é dogmático, isto não se pode mexer. Ao fim e ao cabo isto é cortar a
liberdade a Deus e dizer-lhe: ou passas por aqui ou não passas.
Nunca levou um puxão de
orelhas da Igreja por pensar assim?
Nunca tive qualquer problema com
o episcopado português. Só tive problemas com o cardeal Cerejeira, que não me
deixava pregar. Mas depois do 25 de Abril nunca mais voltei a ter problemas.
Mas é um teólogo
reconhecido e já escreveu muito. Não seria natural que, nesta altura da sua
vida, tivesse um cargo de grande responsabilidade no episcopado português?
Não. E é uma coisa que nunca me
passou sequer pela cabeça. Nunca gostei, quando tive responsabilidades
académicas e a outros níveis. Aborrecia-me. Não tenho nada contra a
responsabilidade, mas incomodava-me aquela ideia que as pessoas formam: aquele
é superior, manda em nós. E há uma coisa que detesto: o carreirismo. Por vezes
vejo clero mais jovem a fazer coisas para ver se trepa. Eu acho isso ridículo.
Jesus já dizia que os que governam as nações oprimem-nas e ainda querem passar
por benfeitores. Devemo-nos pôr ao serviço uns dos outros. Não tenho nada
contra os bispos ou os cardeais, só quero que os seus cargos sejam para servir.
E não sinto apetite, gosto ou competência por esses lugares.
Acha que nunca foi
convidado por ter determinadas opiniões?
Eu sinto que por pensar assim há
quem entenda que não posso pregar nesta paróquia ou não posso ir a este sítio.
Mas isso não me causa problema nenhum. Se não querem, não querem. Deveras! Não
passa mesmo por mim. Há tempos fizeram-me uma homenagem e eu fico sem saber
lidar com essas coisas. Acho que a pessoa que gosta de ser lisonjeada está
estragada.
Porquê?
É verdade, não gosto de escrever. Gosto é de ler e gosto de
debater. Mas as crónicas foram uma grande aventura. Muitas pessoas
interpretavam-nas como uma espécie de homilia de domingo.
Os pregadores dos tempos modernos precisam desta ligação aos
media?
Quando comecei não havia muita coisa. O padre Rego tinha feito uma
coisa pequena no "DN". E o padre Rui Osório, no Porto, que era
jornalista, escrevia às vezes no "JN". Havia já muitas iniciativas em
França, na Alemanha... uma certa descoberta dos meios de comunicação enquanto
veículos de fé. Mas o problema é que ligada à pregação vem aquela ideia de
que... aí vem o sermão. Uma espécie de arte da moraleja, estar sempre a
insistir no que é proibido e no "deves fazer isto" e "não deves
fazer aquilo". A pregação não é isso.
O que é então a pregação?
Não é isso nem é propaganda. É dar voz aos anseios das pessoas e
àquilo que, na tradição cristã, interpretamos como o projecto de Jesus. Dar
sentido à vida através dele. O problema da pregação é assumir, em cada época,
segundo os povos e as culturas, esse projecto de Jesus que, no fundo, é fazer
do mundo uma fraternidade.
Se Jesus vivesse no nosso tempo escreveria nos jornais?
Claro. Pregaria em todo o lado. Embora... repare... nós não temos
nada escrito por Jesus. Temos escritos de representantes de comunidades. É uma
escrita plural. São Paulo tinha mais essa vocação de jornalista, de
comunicação, estava sempre em ligação com as comunidades. Escrevendo,
escrevendo... Jesus foi o projecto de dizer: é preciso mudar. Este mundo não é
mundo que se apresente. Começou a pregar, anunciando que até então reinava a
opressão das pessoas e que era preciso o reinado da libertação das pessoas. É
este o projecto.
A nossa sociedade precisa de um novo profeta?
Nós temos imensos profetas! A profecia de que precisamos, hoje, é
a da dignidade humana.
Em que sentido?
Vivemos num país em que faltam crianças, em que os mais velhos,
que sustentavam as famílias, viram os seus rendimentos cortados... O primado
que existe no mundo contemporâneo, e não é só em Portugal, é o primado da
finança e não o do bem-estar das pessoas.
Sem finança não há bem-estar.
Não. Todos os dias ouvimos falar
de como as coisas funcionam ao nível da banca e no mundo dos negócios, os
milhões que se ganham e com que se mexe. Não se ouve falar dos milhões de
pessoas que estão na miséria. Dignidade humana é perceber que o ser humano tem
o direito e o dever de poder viver, sob o ponto de vista do ensino, da saúde,
da solidariedade, da constituição da família. E quem tem os meios tem também o
dever de ajudar os outros e de construir um país em que o bem de todos venha
antes do bem só de alguns magnatas.
O que quer dizer é que
existem recursos e que a crise que é de valores ?
Crise de valores e de juízo. As
pessoas andam sempre a falar da austeridade e da falta de recursos, mas o
problema, creio eu, ainda não é esse e nunca será. O problema é que os
interesses financeiros vivem numa lógica que é: que lucro é que eu posso ter
com isto? Em vez de se pensar no lucro que a comunidade pode alcançar. Em
qualquer decisão económica, financeira ou política deve pensar-se primeiro na
dignidade humana e no bem comum. E a política é o mais importante, porque é o
que olha por todos. Ou deveria olhar.
A política de hoje só olha
ao poder?
O que é o poder? O verdadeiro
poder é as pessoas terem saúde, poderem estudar, investigar, terem recursos
para levar uma vida digna. A democracia é para dar poder a todos. Mas é algo
sempre imperfeito e que é preciso ir sendo corrigida segundo os resultados. A
árvore aprecia-se pelos frutos e muitas decisões políticas que se tomam devem
ser corrigidas consoante o fruto que deram às populações. Agora em Portugal...
esta discussão sobre o SNS, o Estado Social... O que se deve discutir é
soluções. Onde estão os recursos? Onde vamos investir? Na educação? Na
investigação? Ou naquelas coisas fantasiosas que dão lucro só a determinadas
empresas e o resto não conta? É necessário discernimento político.
Saber discernir prioridades e perceber onde podemos encontrar
meios.
Há decisões que não competem só aos agentes políticos nacionais.
Então é preciso trabalhar no diálogo político. Há pouco falava da
questão dos profetas dos nossos tempos. Profeta é, no sentido bíblico, o Homem
clarividente. Estamos perante uma situação em que em vez de as pessoas se
calarem e fecharem os olhos é preciso parar e dizer: quais são as causas da
actual situação? E como poderemos inverter este caminho? Diz-se que não existem
alternativas. Como é que se sabe que não há? Já se experimentou? O profeta é
alguém que interpreta os sinais dos tempos. Há um problema de falta de
clarividência, com os interesses de grupos, de empresas a serem mais importantes
no lucro que alguns vão ter. Mas a prazo não vão ter lucros, vai ser um
desastre.
Quem faz esse papel profético em Portugal?
Actualmente há uma carência profética, em parte porque as igrejas
se retraem muito para que não se diga que se estão a meter no que é da
política. Quando a Igreja, hoje, para ser profética, não pode desvalorizar a
política, a economia, a finança. Tem de servir de mediação, dar direcção,
ajudar a perceber que há caminhos que levam ao desastre e outros que ajudam a
tornar a vida mais feliz. Mas, ainda assim, vai havendo essas vozes proféticas.
Há um profetismo enorme nos bairros... as pessoas que se ocupam daqueles que
não têm nada para viver, os que se organizam civilmente, os voluntários que
servem refeições a quem não tem o que comer. Há vozes, pessoas que compreendem
que se pode fazer de outra maneira e que se substituem ao Estado, que tinha
essa obrigação. Isto é um profetismo de bases, por assim dizer. Mas há vozes. O
Papa Francisco apareceu como uma voz mundial.
Como é que um frade olha para os casos de corrupção que vão sendo
descobertos?
Há bocado falou do problema dos valores. Esse problema não é
abstracto. Cada pessoa é educada para saber dizer o que mais conta na vida?
Kant dizia que o ser humano não tem preço.
Só tem valor. Não pode ser um meio para ser algo melhor do que
ele. As coisas é que têm de estar ao seu serviço. As pessoas corrompem-se
porque têm apetites desgarrados. Pensam que fazendo este ou aquele golpe vão
ser ricos e ser rico, hoje, significa tudo. É esta ideia louca de que sendo
rico tenho todas as hipóteses. E nunca penso no importante, que é: como devo
fazer para desenvolver as minhas capacidades intelectuais, afectivas,
relacionais? Se desde a escola, desde a família, se incutisse nas crianças a
honestidade, o sentido do dever, da solidariedade, a importância do
desenvolvimento das capacidades individuais para criar um ambiente bom para
todos... Mas o pensamento, hoje, é outro: como é que eu posso ser melhor do que
o outro? Como posso ir à frente de toda a gente? Estamos a criar uma cultura
tecnológica em que as crianças são desde logo habituadas a lidar com ipads, mas
que não sabem olhar para a natureza, para o mundo e para os outros. E esta é a
maior corrupção: a corrupção das relações humanas. Os pais com os filhos, o
marido com a mulher, violência em casa. É-se corrupto porque se tem a
inteligência e os desejos e gostos distorcidos.
Mas é mau ter desejos?
Não é mau ter desejos, desde que se deseje aquilo que vale a pena
ser desejado. E a primeira coisa que vale a pena desejar é o nosso
desenvolvimento com o desenvolvimento dos outros. Muita gente diz- -me que isso
é conversa fiada. Mas... E assim como está o mundo... Está bem? Isto não é
mundo que se apresente, e como dizia São Paulo, não nos devemos conformar como
o mundo está.
domingo, outubro 12, 2014
terça-feira, outubro 07, 2014
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