domingo, março 28, 2010

Porque foi publicado no Expresso de ontem, já o posso "guardar" aqui.

A férrea doçura de minha Mãe transformou os Machado Vaz em satélites agradecidos. Marido, filho e netos habituaram-se à opinião firme e não cortante, a apoio certo mas jamais incondicional, ao colo acolhedor e contudo sempre temporário, ela não permitia que a sua força atrasasse o futuro de ninguém. Quando o primeiro bisneto nasceu, embalou-o com o enlevo que reservava a todas as crianças, mas já não o reconheceu como herdeiro e fiel depositário da lenda familiar.
O meu Pai sofreu o primeiro enfarte e a Mãe disse, com envergonhada firmeza: “se morrer, apenas fico por tua causa e dos meninos, a vida sem ele não faz sentido. Desculpa”. Abracei-a em silêncio, nada havia a desculpar - eu fora testemunha, fruto e voyeur invejoso de um árduo amor perfeito durante cinquenta anos. Quando a velha dama risonha cantada por Neil Young tentou de novo seduzir meu Pai, a vida dela rendeu-se ao horror permanente de o perder: vigiava-lhe passos, queixas, esgares e mesmo a sesta, inventava pretextos para o acordar porque lhe parecera demasiado quieto e a cabeça, derrotada, pendia sobre o peito. Como a fina inteligência!, após o segundo enfarte ele baloiçava entre a venerada lucidez e um estado confusional embrutecido, que o deixava frente à televisão em permanente e cego zapping. Enquanto o jornal amado permanecia virgem ao alcance da mão, de súbito analfabeta….
Eu abria a porta e perguntava como se sentia ela, que de imediato me chamava à (sua) realidade com um “como achas o Pai?” sem réplica possível. Entretanto, e sem eu saber, começara a perder-se na rua e a gerir o quotidiano à custa de papelinhos e aflitos regressos a super-mercados, oficialmente decretados meros esquecimentos. E o filho psiquiatra, obediente, observava-o a ele… Até que um dia reparei no seu cabelo e percebi que minha Mãe mudara, a palavra desleixo não constava no seu vocabulário. Ofereci-me para a levar ao cabeleireiro – “ele fica sozinho”…, “estou cá eu, um dos rapazes leva-te”…”não, deixa-me”. Aos gritos de raiva, face escondida nas mãos, choro convulsivo, como pudera ser tão néscio?
E à terceira foi de vez, o seu homem partiu; num sofrimento que envergonhou a Medicina, ela aconchegava-lhe os lençóis, “o Pai ainda se constipa…”. Quando lhe dei a notícia, uma calma estranha invadiu o quarto e expulsou o delírio em que vivia, disfarçou a ordem de pedido, “levas-me?”. Perante o meu olhar atónito beijou-lhe a testa e velou-o com a minha entre as suas mãos, afiançando-me que ambos trataríamos de tudo “para proteger os meninos”.
Todos fomos sendo esquecidos, talvez pelo esforço titânico para o manter a ele algures. E um dia as costas endireitaram-se, nos olhos faiscou de novo aquele verde que me assustava e enternecia, “por favor, ajuda-me a acabar com isto”. Pedia auxílio e consentimento, era incapaz de trair, “fico por tua causa e dos meninos…”. Não consegui e ela regressou às catacumbas do cérebro. O corpo resistiu doze anos, o espírito há muito que se juntara a meu Pai. Agora, espera-me em Cantelães. Onde lhe reencontrarei o colo. E bálsamo para a culpa não culpada que ainda sinto. Só ela o pode fazer, “vem, menino”. Abrindo sorriso e braços, lá onde repousa - no meio das (outras) flores.

sexta-feira, março 19, 2010

Dia do Pai.

Releio A Cidade e as Serras e em em cada esquina das palavras sussurra a voz de meu Pai: o diagnóstico do velho Grilo - "Sua Excelência sofre de fartura"; Sua Alteza de partida, incitando o anfitrião do 202 - "O peixe, Jacinto, desencalha o peixe!"; Efraim e o capitalismo selvagem explicado numa frase - "esmeraldas! Está claro que há esmeraldas!... Há sempre esmeraldas desde que haja accionistas!"; Jacinto em desesperada busca do natural - "Vamos ao Jardim das Plantas, ver a girafa!".

Meu Pai amava Eça, de quem dizia, num contentamento educativo - "está lá tudo". E as suas citações favoritas arvoram-se em banda sonora da saudade que não esmaece. Se tivesse de escolher uma para legenda de memória nossa, iria buscá-la a este livro. Porque quase até ao fim da vida, raras foram as vezes em que meu Pai tropeçou no filho embrenhado no desafio do Verbo e não murmurou, enquanto aflorava com dedos tímidos a minha nuca - "faz bem, lembre-se do Jacinto - há que ler, há que ler...".

Mas "Quase até ao fim" traduz aceitação reflexa - logo não meditada, o que sobremaneira o escandalizaria! - de um conceito de vida que a vida me foi fazendo recusar com redobrado vigor: a sua identificação a funções vitais necessárias mas não suficientes. "Até ao fim", deveria ter escrito. Porque o meu Velho só deixou de assim me exortar à leitura quando já não desdobrava o jornal que minha Mãe religiosamente colocava a seu lado todas as manhãs.

E a partir desse momento, testemunha que sou do brilho e eterna curiosidade da sua inteligência, seria de lamentável mau gosto dizê-lo vivo. A ninguém ocorre chamar ainda navio aos destroços que salpicam as águas depois do naufrágio:(.

quinta-feira, março 11, 2010

Quase...

Rabugento, quase adormecer-te no colo. As crianças resistem, negam, fazem birra, nós sorrimos e comentamos - "está perdido de sono". Talvez, mas dormir parece-lhes um crime desleixado, antes mesmo de o saberem já consideram obsceno passar um terço da vida fora dela, sonhar?, não é a mesma coisa!, quem precisa de alucinar outros com brinquedos de carne e osso no quarto ao lado?
Por isso resisto a essa mão pelos meus cabelos, aos olhos enevoados e à promessa de ouro de lei - "depois...". Não, querida, agora, o cansaço vem de dentro e longe, não se renderá a duas ou três horas de sono inquieto. Agora. E depois... Depois... Depois pedimos meças aos contorcionistas do circo da minha infância, entalados entre palhaços deprimentes e leões deprimidos, e adormecemos no colo um do outro:).

segunda-feira, março 08, 2010

TVC1

O processo de Eichmann. A ladainha clássica - "obedeci a ordens"... "Hitler"... Quando visitei Dachau recordei as experiências feitas com universitários americanos, que administravam (teóricos) choques eléctricos a actores implorando misericórdia. Porque tinham recebido ordens para o fazer... O Mal como visão ontológica é um mito que nos protege de um espelho perturbador - os maiores crimes podem ser cometidos por gente banal. Adjectivá-la de monstruosa não a transforma em extra-terrestre. Por muito que nos custe, o horror de que falava Conrad é, pelo contrário, simplesmente humano:(.