DENTRO DO GÉNERO
O
sexo e a idade
por JOÃO TABORDA DA GAMAHoje
DN.
O país tomou de ponta um
trio de juízes do Supremo Tribunal Administrativo (STA) por terem dito que sexo
aos cinquenta tem menos importância do que sexo aos vinte. Foi logo uma orgia
comentarista, e de todos os cantos saltaram casanovas grisalhos ofendidos na
sua virilidade e mulheres juristas a dizer que bom bom é agora depois da
menopausa, sem limites nem tabus (nota mental: não faltar ao jantar dos 40 anos
do meu curso de Direito, em 2040).
Na decisão do STA há
algo mais grave do que a questão da idade: uma desvalorização subconsciente da
sexualidade feminina aliada a um forte preconceito social. O sexo não vale
menos porque a vítima tem cinquenta anos, o sexo vale menos porque a vítima é
mulher. E empregada doméstica.
Sexismo nos tribunais
portugueses não é coisa nova. Na semana passada assinalaram-se os 25 anos da
mais abjeta decisão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), em que um juiz Tinoco
culpa duas jugoslavas por terem sido violadas no Algarve. Afirmou que as
ofendidas, "raparigas novas mas mulheres feitas", "muito
contribuíram" para a violação ao virem para a estrada pedir boleia
"em plena coutada do chamado "macho ibérico"". As moças
tinham de ter "previsto o risco que corriam", "pois a atração
pelo sexo oposto é um dado indesmentível e por vezes não é fácil
dominá-la". Sabiam ao que iam, disse Tinoco, até porque no Algarve
"abundam as turistas estrangeiras habitualmente com comportamento sexual
muito mais liberal e descontraído do que o da maioria das nativas" - a
culpa é, claro, da portuguesa nativa que trata pouco do macho marido e apenas
na posição do missionário, de terço em riste, a pensar nos pares de meias que
tem de cerzir quando acordar. Para Tinoco, as bifas não só tiveram o que
mereceram como até gostaram do que tiveram - "as duas ofendidas deviam ser
já raparigas de comportamento sexual experiente e desinibido", umas
sabidonas, já que uma delas "rapidamente deixou de oferecer resistência à
violação e, no fim, até elogiou a forma e o ardor viril" do violador.
Gostas pouco, gostas. Tinoco não terminou sem aventar que, "possivelmente,
outras formas haveria, contudo, de ele manter relações sexuais com uma ou, até,
com as duas ofendidas". Com mais jeitinho, tinhas papado as duas.
Nas bodas de prata da
cavernícola decisão Tinoco, o problema não é o que os juízes do STA no mês
passado disseram sem pensar sobre o sexo e a idade, mas o que pensaram sem
dizer sobre o género e a condição social. Claro que os juízes do STA não são
frustrados sexuais, como se lê por aí. Acreditam, como nós, na sexualidade
sénior, e que a chama não murcha aos cinquenta. Vivem, como nós, num mundo onde
há até cada vez mais sexualidade sénior, tal é a fartura de ajudas disponíveis
no mercado, desde o Viagra (para ele) aos romances do Sousa Tavares (para ela).
Perante um caso com algumas inconsistências de prova e deficiências de
fundamentação, os juízes quiseram reduzir a indemnização e pegaram, entre
outras coisas, na idade e número de filhos. Tudo isto mais não é do que a face
visível de um preconceito sobre o género e a condição social, que fica aliás
muito claro se olharmos a outros casos.
Em 1998, um
"administrador de empresas" retirou a próstata na sequência de uma
biopsia ter revelado cancro. Afinal não havia cancro nenhum e, além do susto, o
"administrador" ficou incontinente e impotente. Ao senhor
"administrador" "com quase 59 anos", o tribunal atribuiu,
em 2008, 224 500 euros de indemnização. Ainda há três meses o STJ fixou em 100
000 euros a indemnização a um homem "social e financeiramente bem-sucedido
na vida" que, num caso idêntico, ficou incontinente e com as ereções reduzidas
a 60%-70%. Tinha 55 anos. Quando uma vida vale em média 65 000 euros nos
tribunais, a filosofia judicial é clara: antes morto que mortiço. Os tribunais
sabem bem o valor do sexo depois dos cinquenta, mas sobretudo para homens que
estão bem na vida. Na cabeça dos tribunais, um homem rico e uma mulher pobre
são mesmo pessoas de sexo diferente.
Na decisão do STA do mês passado,
o preconceito social nem está tão disfarçado quanto isso. Basta seguir este
raciocínio: "Não se tendo provado que a Autora tivesse ficado incapaz de
realizar todas as lides domésticas" e, tendo em conta "as idades dos
seus filhos, a mesma apenas teria de cuidar do seu marido". Logo, é para o
Tribunal "forçoso concluir que a mesma não teria necessidade de uma
empregada a tempo inteiro". Uma empregada doméstica com empregada
doméstica? A tempo inteiro? Além de marota, és preguiçosa.
Há muito que se estuda,
infelizmente não por cá, o efeito do estereótipo e do preconceito sexual e
socioeconómico nas decisões judiciais: involuntariamente, os tribunais decidem
de forma diferente casos muito semelhantes apenas pelo simples facto de as
vítimas serem homens ou mulheres, ricos ou pobres. E foi este enviesamento que
esteve por trás da desajeitada afirmação sobre o sexo depois dos cinquenta.
Os tribunais portugueses já não
escrevem com todas as letras que uma estrangeira merece e até gosta de ser
violada na coutada de machos insaciados por nativas inibidas. Mas são vítimas
de um inconsciente preconceito sexista e social não menos perigoso.
16 comentários:
A minha chapelada ao João Taborda da Gama.
TODA...
"Não se tendo provado que a Autora tivesse ficado incapaz de realizar todas as lides domésticas" e, tendo em conta "as idades dos seus filhos, a mesma apenas teria de cuidar do seu marido"."
Claro! Para que é que a depravada queria sexo???
"...uma desvalorização subconsciente da sexualidade feminina aliada a um forte preconceito social. O sexo não vale menos porque a vítima tem cinquenta anos, o sexo vale menos porque a vítima é mulher."
Claro! É esta a grande questão!
Pensei que ideias tacanhas e preconceituosas como as expressas no acordão fossem exclusivo de trolhas ou do Zé da esquina...
Pensei que gente com cultura tivesse a mente mais aberta. Ingenuidade da minha parte, como se constata...
Cretinos!
Palmas de pé para João Taborda da Gama e muitos agradecimentos par si pela partilha .
Os meus respeitos.
Sobre o artigo inicial do Supremo e a decisão dos juízes, também li uma série de comentários que faziam juízos de valor sobre a vida sexual dos ditos. Não quis ir por aí.
Também eu pensei ser mais uma questão de género, sobre a qual me abstive de comentar, não fossem chamar-me feminista, e não é disso que se trata. Apenas a constatação duma realidade há muito enraizada na mentalidade portuguesa de que a sexualidade feminina tem menos valor em relação à masculina.
Se fosse um homem o lesado pela justiça num caso similar, a sentença teria sido diferente.
Quanto ao caso judicial de há 25 anos atrás das turistas no Algarve, é óbvio o que penso.
E acho que as "nativas" portuguesas, sobretudo as de hoje têm uma sexualidade bem diferente do esteriótipo descrito, ironicamente, no artigo. A maioria das mulheres portuguesas já não são sexualmente reprimidas, assim como muitas mulheres estrangeiras, ainda o são.
Culturalmente há um sem número de diferenças de comportamentos sexuais e não só, e regras sociais nos diversos
países. Um exemplo é que no Canadá um decote não é socialmente bem aceite em público, existindo um grande pudor em relação ao corpo, que paradoxalmente, coexiste com a grande liberdade sexual.
E pronto, já dissertei:)
Sejam felizes
Beijinhos
Concordo que por ser mulher e por ser pobre. Se o assunto fosse outro - que não sexo - o resultado seria idêntico: com os mesmos juízes, ela perdia.
Bea
Eu diria que com a justiça em Portugal perde-se sempre, ou quase. Claro que isto é uma generalização, e a situação já me empurrou para a generalização. Até começo, por vezes, a não gostar de mim por ficar tão azedo com o mundo.
Andorinha
Cito-te: «Claro! Para que é que a depravada queria sexo???»
Não percebi os 3 pontos de interrogação :):):):):):)
rainbow
Boa dissertação. O exemplo do Canadá é bem real.
E depois eu sempre gostei do ano de 1968. E vocês?
http://disco.io/playlists/uaO1O8RM
Aquiles
azedar é normal.
Sem querer desmerecer o problema português que vitima por preconceito parvo a que os jornalistas e outros dão cobertura ampla sem resolver nem dissecar a realidade, antes extrapolando-a indevidamente, deixo-vos com Denis Mukwege
"mais de 45 000 vítimas de violação foram operadas por este médico a quem o Parlamento Europeu atribuiu o Prémio Sakharov (...) no caso deste congolês de 59 anos, é imperioso falar-se dos direitos negados às mulheres, meninas e bebés que ele continua a assistir e a salvar (...) Mukwege prefere não discutir ( o número de ataques sexuais diários), preferindo antes descrever o sofrimento do mundo que conhece: "vi vaginas onde espetaram pedaços de madeira, de vidro, de aço. Vaginas laceradas por lâminas de barbear, por facas, por baionetas. Vaginas queimadas com borracha em brasa, com soda cáustica. Vaginas em que deitaram gasolina e depois pegaram fogo""
in Visão, pág 26
Tal como a revista, não entendo porque não lhe deram ainda um Nobel da Paz. Ou por que razão o mundo dito civilizado não intervém. Assistir sentado é também um grande de um preconceito.
Fiquem bem. Um Dia e Noite Bons
BFS
Very true.
E se o preconceito ficasse apenas por aí...
A própria lei está desfasada relativamente a inúmeras situações.
Mas os queridos da Assembleia andam mais preocupados em enviar atempadamente os comprovativos das despesas se representação às suas ONG(zinhas)... do que el legislar corretamente ou de forma mais humana.
Bea
Sei, e muito bem, que a linha que separa o civismo da barbárie é muito ténue. Um ser humano pode caminhar de bestial a besta num ápice. E qualquer um. Nenhum de nós é imune. A facilidade com que somos capazes de actuar com irracionalidade é gigantesca.
E termino citando alguém que desconheço:
A estupidez é o maior flagelo da humanidade.
Boa tarde:)
Bea
"Assistir sentado é também um grande de um preconceito."
É mesmo.
Aquiles
Já várias vezes aqui expressei a minha opinião de que o ser humano é na sua essência bárbaro, desde os tempos mais remotos até à actualidade. O que mudam são os cenários.
Um abraço para si e família, e já agora para os Açores:)
E para saudar estes dias de Verão em Outubro, deixo-vos uma musiquinha:
https://www.youtube.com/watch?v=gkUsGkxZSvM
Abraços
Rainbow,
E dissertaste bem:)
Aquiles,
"Até começo, por vezes, a não gostar de mim por ficar tão azedo com o mundo."
Tens bom remédio! Adoças-te:))))))
Bea,
Que horror! Como se pode chegar a esses extremos????
Lá está, o mundo dito civilizado não intervém porque não se passa aqui ao lado. Se é em África eles que se entendam
É isso, é a mutilação genital feminina...:(
Cobardes de merda!
Como é ainda tão doloroso ser-se mulher neste mundo!
"Assistir sentado é um preconceito?"
Como assim? Nós, individualmente pouco podemos fazer. Podemos e devemos denunciar, mas isso só não chega.
Sei lá...as associações de direitos humanos, a Amnistia Internacional, organizações humanitárias tinham obrigação de se "mexer".
A ouvir a tua musiquinha, Arco íris:)))
Bom fds
Desde 1500 pouco se evoluiu
O Estupro de Lucrécia de Shakespeare
http://tresando.com/tag/o-rapto-de-lucrecia/
Saravá
IMPIO
http://direito.folha.uol.com.br/blog/cime-traio-e-legtima-defesa-da-honra
Ciúme, traição e legítima defesa da honra
Matar alguém por ciúme é justificativa? Diminui a pena? Nós já vimos aqui o que é uma excludente de ilicitude. E vimos também que a legítima defesa é uma das excludentes de ilicitude. Mas há um mito no Brasil de que existe algo chamado legítima defesa da honra. Ela aconteceria quando o cônjuge ou namorado(a) traído matasse o(a) parceiro(a) que trai e/ou a pessoa com quem trai. Segundo esse mito, a legítima defesa da honra seria um tipo de legítima defesa e, portanto, faria com que a justiça absolvesse o acusado. A lógica seria que a honra faz parte da pessoa, da mesma forma que a vida ou o corpo, e por isso a pessoa pode matar para protegê-la. Pois bem, isso é mito. Nosso antigo Código Penal (que vigorou entre 1890 e 1940), previa em seu artigo 27 que se excluía a ilicitude dos atos cometidos por aquelas pessoas que “se acharem em estado de completa privação de sentidos e de inteligencia no acto de commetter o crime”. Basicamente ele estava dizendo que não era considerada criminosa a pessoa que cometesse um crime quando estava em um estado emocional alterado. Era esse artigo que alguns juristas usavam para justificar a legítima defesa da honra. Mas reparem que, em nenhum momento, ele está dizendo que a pessoa pode matar o(a) parceiro(a) que está traindo. Isso era interpretação desses juristas. Mas leiamos, agora, o artigo 28 de nosso atual Código Penal: “Não excluem a imputabilidade penal: I - a emoção ou a paixão”. Ele diz justamente o contrário do que dizia a antiga lei. Foi para que não houvesse nenhuma dúvida que o legislador não desejava que os magistrados absolvessem alguém que agiu movido por ciúme ou outras paixões e emoções é que o ele inseriu esse inciso na lei. Pois bem, o mito, por ter entrado na cultura popular, perdurou até hoje, ainda que os magistrados e tribunais não aceitem o argumento de legítima defesa da honra. A bem da verdade, esse argumento pode levar (e muitas vezes leva) à aplicação de uma pena maior ao acusado. Isso porque um outro artigo (61, inciso I, alínea ‘a’) de nosso Código Penal diz que cometer um crime por motivo fútil é uma agravante, ou seja, faz com que a pena seja mais severa. A mesma coisa apare no artigo 121, §2° (lê-se ‘parágrafo segundo’), inciso II, que diz que matar alguém por motive fútil transforma o homicídio de simples (cuja a pena maxima é de 20 anos) em qualificado (cuja pena máxima é 30 anos).
Saravá
IMPIO
Ímpio
tens razão, não estamos assim tão longe uns dos outros. Entre a Lucrécia de Shakespeare e o exemplo brasileiro a distância real não é de séculos:)
Oh! Quanto pesa nas mulheres a honra masculina! Bolas que não há nada com que as não carreguem.
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