sexta-feira, março 11, 2005

Irmão de filho único

Amanhã faria anos o Pierre. Que durante muito tempo confirmou a minha teoria sobre as relações humanas - a unidade fundamental é a "tribo afectiva", não a "família de sangue"! Éramos hilariantemente opostos. Comigo desempenhando o papel do distraído sem qualquer sentido prático e ele o de irmão mais velho, exasperado pela azelhice suicidária do caçula. E no entanto, quantas vezes me telefonou, "preciso da tua opinião". E discutíamos o problema até ao osso, sem contemplações, no jardim maravilhoso que era o seu. Menti-lhe durante ano e meio acerca da sua doença. Não me orgulho disso. Mas também não me arrependo, acho que depois das primeiras pesquisas na Net, decidira agarrar-se à esperança até ao fim. Penso nele todos os dias. Como penso no Zé Gabriel, que comigo fez O Sexo dos Anjos. Porque os amigos íntimos são demasiado preciosos para que nos possamos dar ao luxo de permitir à morte roubá-los. Não; só o esquecimento o poderia fazer. E nessa armadilha não caio eu:)

17 comentários:

cris disse...

Nas memórias se reconstroem as relações face à ausência.
Obrigada por este post, o mais bonito. Talvez pq dorido, não sei.
Um abraço.

Anónimo disse...

É como termos alguém sempre presente que, no entanto ainda não morreu e, todavia está longe...
Um abraço

Anónimo disse...

É um lugar comum dizer-se que enquanto existirem na nossa memória os mortos não morrem e por mais que o seja,sentimos sempre o vazio da sua presença.
Acho que os amigos são a nossa familia do coração,na qual às vezes cabem pessoas com o mesmo sangue que nós.

ines silva disse...

Conheço essa realidade,infelizmente. Mas agarro-me com todas as minhas forças às boas recordações, à partilha de conhecimento e aventuras vividas com o meu Pai (e também um dos meus melhores amigos)para que a memória dele não se desvaneça no horizonte esfumado do esquecimento.
Um grande beijinho de uma leitora atenta :)

Madalena disse...

Eu também tento fazer sobreviver a memória à enganadora carcaça...
Mas o "fazes-me falta" (Inês Pedrosa) é mesmo nome de um sentimento de saudade. Mas disto percebe o Doutor, mais do que eu...

floreca disse...

Há mentiras que até a nós próprios dizemos... e quantas vezes com resultados?
Então no campo das saudades, somos peritos...

Helena disse...

:)*

K. disse...

As pegadas invisíveis dos nossos afectos... A memória como o último reduto da imortalidade de algo ou alguém em nós. Fez-me lembrar uma frase de Paul Auster, no seu livro Inventar a solidão: "Memória: o espaço em que uma coisa acontece pela segunda vez."


www.katraponga.weblog.com.pt

noiseformind disse...

Meu caro colega, que alegria sabê-lo tb por estas lides. E ainda por cima em formato de diário. Eu não consigo "chegar-me a tão perto de mim", fico-me pelos devaneios de um proxeneta e pelos outros devaneios profissionais.
Li a sua crónica de despedida do Pierre quando, chegado a Portugal n havia mais que meses, comprei a sua colectânea de textos "Estilhaços".
Mas a minha relação com o seu trabalho vai mais longe: é impossível que se lembre, mas faço-lhe desde já a confissão: (duplos dois pontos, erro atroz e vicío sequaz que trouxe dos EUA) foi uma chamada que fiz para o Sexo dos Anjos na Rádio nova que ditou a minha ida para o lado da Psicologia, tão certo estava a minha família de me ter, de pedra e cal, do lado da Força do betão armado, vulgo empreiteiros. Ainda hoje tenho a cassete guardada numa daquelas infantis "time shell's" que vou abrir com filhos ou netos para mostrar como era "no meu tempo". Perguntei numa semana se "as relações hoje em dia, de tão frias, de tão automáticas, não corriam o risco de serem meros prolongamentos da masturbação solitário, é que quando me relaciono com as pessoas da minha idade (tinha 15 anos na altura) é isso que sinto, sinto que é tudo muito fácil para dar uma queca, mas as pessoas ao mesmo tempo cada vez mais se fecham sobre o que as motiva, o que as diverte, o que pensam". E o Doutor Júlio Machado Vaz, semi-deus para mim na altura, a dizer-me que "este ouvinte resume perfeitamente muito do que me entra pelo consultório". Nem hesitei... bem me podia dizer o meu pai que eu tinha jeito para números (ainda hoje sou eu o gestor do fundo da famelga), o meu pai n falava na rádio, perdeu para si imediatamente o filho ; )))

Um abraço,

Peter

Anónimo disse...

Ainda não sei o que isso é, mas compreendo-o perfeitamente.
Também eu acho que a unidade fundamental é a "tribo afectiva" e não a família de sangue. A nossa "tribo" escolhemos nós enquanto que a família nos é imposta.
Mas também é verdade que como diz a Monalisa às vezes nessa tribo cabem pessoas com o mesmo sangue que nós.
Realmente o post é lindíssimo de tão intimista.
Um abração.

lobices disse...

...como podemos esquecer esses amigos íntimos que passam pelas nossas vidas?... Perdão: melhor dizendo: não são eles que passam pelas nossas vidas, somos nós que passamos pela vida deles e é aí que a fronteira se demarca ou náo, ou seja, é aí que sentimos a amizade de alguém ou é aí que nos sentimos amigos de alguém... abraço

Silvia Chueire disse...

Nada como ir reconhecendo, resgatando, da memória para as palavras, ditas ou escritas. As coisas se tornam presentificadas. Um merecida atenção a nós, ao outro e aos momentos que vivemos juntos.
Gostei de lê-lo.
Abraço,

Silvia Chueire

Anónimo disse...

como se costuma dizer, a familia nao se escolhe mas os amigos, os que realmente estao presentes, estarao sempre presentes. a memoria e a saudade sao por vezes o que nos faz continuar.
obrigado por este post

Anónimo disse...

Mas como é que se faz? Como é que se passa simplesmente à ternura? Como é que se faz quando a morte ainda não é real, quando a morte dele foi necessariamente trágica, espiolhada e sofrida, quando ainda não a choramos porque não pode estar morto NÃO NÃO NÃO? E quanto tempo é tempo?

Não é retórico, é assim um "Posts pedidos". Se um dia lhe apetecer escrever sobre lutos saudáveis, lê-lo-ei. Se não... leio-o à mesma.

Anónima em Lisboa

Mari disse...

As pessoas que ainda vivem na nossa alma e que já não circulam entre nós, estão "vivas da silva" que ainda nos rimos e choramos com episódios passados!

Anónimo disse...

a familia de sangue nao é de facto uma escolha e por isso mesmo não há como lhe fugir. Vejamos, também nao escolhemos quem somos pois não? Nem sequer escolhemos viver! a inevitavel relação genética entre mim e os meus irmaos ou os meus pais nao pode ser desprezada e relegada para segundo plano. O fenómeno social da amizade é muito interessante mas sejamos sinceros, quem nao tem na sua historia uma amizade que se quebrou? que se diluiu... Em contrapartida nao vou nunca conseguir negar ao meu irmao esse estatuto (o de irmão) independentemente do curso que a nossa vida tomar. Acho que existe uma lógica natural nas coisas, por mais complexas que estas possam parecer, e nesse aspecto creio que uma relação de sangue tem por si só uma intensidade incrivel e inegavel. Se me disser, entao porque passas tu mais tempo com os teus amigos, ou porque pensas mais na tua namorada que na tua mãe? A minha resposta é tao somente que a beleza da relação entre uma mae e um filho (ou pelo menos no meu caso) reside também no facto de não me ser necessario dar constantemente provas de afecto à minha mãe pois ela simplesmente SABE que eu sou seu filho e o hei de ser Sempre e isso é tao inevitavel como bonito.

Anónimo disse...

Sinto muito pela sua perda, espero conseguir também manter sempre os meus amigos vivos na minha memória. É outra ideia muito bonita :)