Canonizações
e seus perigos
por ANSELMO BORGES
No passado domingo, Roma
concentrou mais de um milhão de pessoas, vindas de todo o mundo para a
canonização dos papas João XXIII e João Paulo II, duas figuras que marcaram de
modo decisivo a Igreja católica e o mundo no século XX, como tentarei mostrar
no próximo sábado. Hoje, quereria tão-só reflectir sobre os perigos das
canonizações.
É normal que em todas as
instituições e sociedades se lembre e honre figuras que se destacaram. Assim,
também na Igreja, desde o início, se venerou a memória dos mártires, que deram
a vida por Cristo, e, depois, dos "confessores", cristãos exemplares.
Também por causa dos abusos - durante quase todo o primeiro milénio do
cristianismo, foi a comunidade crente a tomar a decisão de declarar quem era
santo -, o papa Urbano VIII, em 1634, reservou a canonização dos santos ao
bispo de Roma, sem que isso tenha significado o fim dos abusos. Em 1983, João
Paulo II reforçou este centralismo papal, determinando que é "unicamente
ao Sumo Pontífice que compete o direito de decretar" se o servo de Deus em
causa merece ou não ser proposto como exemplo e modelo para "a devoção e
imitação dos fiéis".
O teólogo J. M.
Castillo, que escreveu uma história da canonização, faz notar que, nos santos
que canoniza ou não, o poder papal acaba por pôr em evidência o modelo de
Igreja que quer impor. Por exemplo, quando Eugénio III canonizou, em 1146, o
imperador Eugénio II da Baviera, o que estava sobretudo em causa era
"propor um modelo de governante político, piedoso e submisso à Santa
Sé". Como consequência das Cruzadas, mudou o ideal de santidade, a ponto
de uma pintura do Fim do Mundo retratar Cristo como soldado a cavalo. Outro
exemplo eloquente é o papa Gregório VII, que morreu em 1085, sendo canonizado
em 1728. Foi ele que operou a chamada "reforma gregoriana", que impôs
o celibato obrigatório e centralizou o poder da Igreja no papa, de tal modo que
o teólogo cardeal Y. Congar pôde escrever que, desde então, "obedecer a
Deus significa obedecer à Igreja e isto, por sua vez, significa obedecer ao
papa e vice-versa". Em pleno século do Iluminismo, era preciso exaltar o
papado, recuperando a memória de um papa que já poucos podiam recordar.
Foi por Celso Alcaina
que soube do número de pessoas envolvidas numa canonização: uns 24 funcionários
permanentes na Congregação para as Causas dos Santos, 14 advogados de defesa, 2
promotores da fé, 20 cardeais, 10 relatores, 228 postuladores adscritos, 70
consultores, muitos peritos em diferentes assuntos, vários notários. Pode-se,
pois, imaginar as somas de dinheiro que esta parafernália burocrática custa,
percebendo-se os perigos de discriminação em que ficam homens e mulheres
verdadeiramente santos, pois levaram uma vida heróica, no cumprimento do dever
e na entrega aos outros, mas que não têm suporte financeiro, publicitário,
político. Pergunto sempre: porque é que não se canoniza o Padre Américo e
tantos casais exemplares?
Castillo: Num dos
estudos mais fiáveis que se fizeram mostra-se que "de 1938 casos
examinados de santos canonizados, 78% pertenceram à classe alta, 17% à classe
média e só 5% à classe baixa".
E lá está a magnificência de uma
canonização, que pode ferir a simplicidade do Evangelho. Quando se trata de
canonizar papas, sobrevém o perigo da endogamia e da canonização do poder.
E tem de haver o
"milagre" exigido como comprovativo de santidade. Isso é magia. E
pensar que Deus interrompe ou suspende as leis da natureza supõe que Ele está
fora do mundo e que, de vez em quando, vem dentro e vem para uns e não vem para
outros. Ora, Deus não está fora mas dentro, como fundamento do milagre da
existência de tudo. Precisamente porque tudo é milagre - o milagre de existir -
não há "milagres".
Também nisto, estou com a minha
irmã, que diz: "Eu ligo pouco a estas coisas. Eu sou como o nosso pai que
só rezava ao Nosso Senhor".
8 comentários:
Os santos verdadeiros pensam-se pessoas iguais às outras, não lhes aflora à ideia a canonização. E decerto achariam mal empregue a dita parafernália, se acaso pensassem nisso, que não pensam. São anónimos, basta-lhes o bem que espalham à custa de si mesmos para existirem não sei bem se felizes, cresci convicta que a humana infelicidade era um requisito.
Conheci e conheço um ou outro (são um bocado para o raro). Não sendo deuses, sinto-me indigna de lhes atar as sandálias.
Acerca da santidade dos papas e afins, já disse não sei onde.
O artigo do Padre Anselmo lembrou-me o festival da canção e o modo como se vota:) ainda que pouco tenha a ver, é toda uma máquina de interesses.
PS: nada de desesperos, todos nós, comuns mortais, temos os nossos momentos de santidade (e malvadez). Hummm...não bastam para sermos santos (nem diabos). Mas também não sei quem é que queira tal. Só se forem os mortos que são e não sabem o que são (ou seja, não são rigorosamente nada). Está certo, afinal. Pronto.
Gostei do artigo.
"E lá está a magnificência de uma canonização, que pode ferir a simplicidade do Evangelho. Quando se trata de canonizar papas, sobrevém o perigo da endogamia e da canonização do poder."
Claro, como qualquer pessoa entenderá...
E essa história dos milagres, de facto...
Para além do que o Padre Anselmo diz e que eu subscrevo, ficam-me algumas perguntas.
Como se sabe que foi "milagre"? E pior ainda:), como se sabe que foi aquele Papa ou outra pessoa qualquer que o "fez"?
A mim cheira-me a esturro, não faz qualquer sentido.
E há tanta gente que é "santa", que tem uma vida de entrega e amor ao próximo e que segundo os cânones nunca é santa.
Enfim...
Comentei sem ler o que escreveste, Bea.
Para não me deixar influenciar...
Vês a influência que tens em mim?:))))
"O artigo do Padre Anselmo lembrou-me o festival da canção e o modo como se vota:) ainda que pouco tenha a ver, é toda uma máquina de interesses."
looooooooooooooooooool
Também acho que deve ser parecido!:)
Acerca da santidade dos papas, se já disseste não sei onde, não sei:)
Fica bem.
Santificar João Paulo II que protegeu Maciel e santificou em tempo recorde Josemaria Escrivá...só retira credibilidade , ainda mais, ao Vaticano.
Ainda bem que existem pessoas inteligentes com Anselmo Borges, Januário Torgal Ferreira, Manuel Martins , Fernando ventura!
E como não tenho necessidade de mediações, a minha linha de comunicação com Deus é directa, pessoal e intransmissível!
Obrigada pela partilha e boa noite.
Boa noite. Durmam santamente.
Boa Noite .
Li atentamente o excelente artigo e comentários. A Bea disse tudo o que penso sobre a santidade. A igreja precisa de novos santos, a mídia também . Como ouço na rádio "se me tivesse salvo, era milagre de Deus ,se morrer era tudo culpa dos médicos" .
Transcrevo ainda " O ser humano perfeito é desinteressante , tal como as perfeições dos santos. Por essa razão algumas pessoas tem dificuldade em amar a Deus:nele não há imperfeição alguma. Você pode sentir reverência, mas isso não é amor".
Cristo... Será. O último! A cononizar?
Cabarnet: A Photographic Journey From Vine To Wine
"I am extremely grateful to the many friends who shared my enthusiasm and my vision for this project."
Enviar um comentário