Alguns marselheses estão loucos
14.12.2014
AZEREDO LOPES
Quem gosta do Astérix sabe que, em quase todos os álbuns, alguém diz "Estes romanos são loucos!" Os romanos não são de certeza mais loucos do que os outros. Mas que alguns marselheses estão (não sei se são) loucos, ai isso estão, e concentram-se na Câmara e no equivalente francês do INEM. A questão veio a lume há uns dias, e conta-se depressa.
Com a melhor das intenções, estão a ser distribuídos aos sem-abrigo marselheses (e há-os, bastantes) "cartas de socorro", que deverão ser preenchidas e mantidas em local bem visível, com a indicação do nome e do apelido do sem-abrigo em questão, assim como referência explícita às doenças crónicas que a pessoa possa ter, como a diabetes, a doença cardíaca, o HIV e a esquizofrenia. Não se trata de uma opção: é um dever, apenas aplicável àquela categoria de pessoas. Pressupõe-se, pelo que se compreende das explicações algo atabalhoadas da Câmara de Marselha, que, tratando--se de pessoas vulneráveis pela ausência de laços sociais, a medida é necessária para salvar vidas.
Ora, se logo a começar causa espécie que só os sem-abrigo sejam sujeitos a tanto desvelo (uma vez que a maioria consegue exprimir-se e dizer o que tem ou o que não tem como doenças), do ponto de vista não material a opção agrava-se pelo facto de, na parte de trás do cartão, estar inscrito um triângulo amarelo. E aí, mexemos na História e é o diabo a quatro.
Qualquer um que procure estar atento ao que nos rodeia tem a noção de que, em sociedades muito competitivas como aquelas em que agora vivemos, a tendência para a classificação, a hierarquização e a catalogação é cada vez maior. Por razões de eficiência, por exemplo, criaram-se empresas que se dizem mais competentes a ajudar a escolher e a excluir, a puxar a si o "eleito" ou a deixar no meio da manada todos os restantes.
A "Ciência", agora, também ajuda nestes processos cada vez mais deterministas e darwinianos. Ainda há pouco, a diferença entre quem tinha meios e os restantes era a capacidade de poder diagnosticar o mais cedo possível a maleita e, depois, aceder às formas mais evoluídas de a tratar. Hoje, antecipa-se, definem-se probabilidades: de ter cancro, de ter Alzheimer, de ter isto ou de ter aquilo, definem-se riscos que podem vir a condicionar a hipótese do empréstimo porque, por exemplo, pode a companhia de seguros não ter interesse nenhum em segurar aquilo que acha que não é seguro. E temos, então, um belo negócio: porque, determinando-se a priori aquilo que é seguro, desaparece ou fica bem diminuída a imponderabilidade (a roleta) que sempre fora associada à saúde ou à falta dela. Quanto à doença, aliás, sempre me pareceu irónico este sentimento de posse (o "ter") relativamente àquilo que de certeza bem se dispensaria, mas a língua é assim, tem - justamente - destas coisas.
E, depois, temos a loucura abjeta da classificação. Aquela em que o "classificado" é tido como inferior ou intocável e em que o objeto da tipificação é a diminuição, a perseguição ou a eliminação do "outro". Os nazis bem nos "ensinaram" como fazer, fosse em relação aos judeus, aos ciganos, aos homossexuais, aos deficientes, aos comunistas ou a outros. E não faltam exemplos, ainda hoje, desta definição implícita ou explícita do inimigo ou do alvo.
Não deixa de ser verdade, no entanto, que a Alemanha nazi (em medida menor, a África do Sul do apartheid) levou ao esplendor burocrático a obsessão que tinha em relação aos seres "inferiores". Definiu-os, estabeleceu graus de parentesco, classificou-os, catalogou-os, atribuiu-lhes, até, símbolos identificadores: no caso, as famosas estrelas cujo uso impôs, essencialmente, aos judeus, introito ao plano de extermínio depois executado.
E aqui é que entra o "triângulo" amarelo dos sem-abrigo de Marselha. Como disse, a simples existência do cartão de saúde que deve ser exibido incomoda e é discriminador pela exibição. A sua associação inevitável a um passado de repelência é estúpida, incompetente e indefensável.
Ora, aí, não há boas intenções que possam ser invocadas e até discutidas calmamente. Aí, estou do lado dos sem-abrigo de Marselha. Aí, a estupidez ignorante deve ser castigada.
12 comentários:
Sabendo que os nazis obrigavam judeus e homossexuais a usarem distintivos de identificação (para não falar na sineta usada obrigatoriamente por quem sofria de lepra na Idade Média) e sem perceber o motivo nem a utilidade destes na nossa época acho indecente e uma humilhação inaceitável uma decisão deste tipo!!
Boa semana
Cito o Herman José, interpretando o padre melícias, perdão... o dácono remédios: « não abia nexexidade zeeee... zeeee...
Mais um sinal de que as sociedades se acham perigosamente à beira de uma catástrofe canibalísta.
Não sei se é estupidez ignorante. E tenho cada vez mais dúvidas. Parece-me só estupidez. Mas ainda bem que há quem aponte. Ainda.
Apesar da notícia. Boa semana para todos. Afinal é a semana antes do Natal. Mesmo para quem não prefere, e apesar disso, fora o consumismo em que só entramos se queremos - e podemos - É UMA DATA COM SIGNIFICADO
saudades; que é uma coisa pequena que se manda como se fora um ramito de azevinho mas sem picos
Esta medida é absolutamente inadmissível! É abjecta, desumana, idiota.
E pouco me importa se o cartão é verde ou vermelho, se tem uma cruz ou uma estrela...
É a medida em si que é abjecta.
Já disse que mais pessoas para além dos sem-abrigo deviam ir "requisitar" esse maldito cartão. Podia ser que assim se boicotasse esta "estupidez ignorante".
Comentei no Face, não sabia que estava aqui...( Sorry!
Passo a vir aqui primeiro, sempre.
That's a promise!:)
Da primeira vez que se falou neste caso, alguém no Face, face à onda de indignação que se gerou face ao cartão que teriam que trazer na lapela, sugeriu que os trouxessem no bolso (????!!!!)
Não entendo esta gente! Podiam pôr no bolso junto com o cartão multibanco e outros cartões...looool, assim já ficavam mais resguardados.
Será que há gente que não entende que é uma questão de princípio?
Cartão Amarelo. Pois podia ser pior, tal como um chip implantado na testa, ou no dedo, ou noutro sítio, com GPS, para georreferenciar o SDF (é assim que os franceses designam os sem abrigo – Sans Domicile Fixe ou simplesmente SDF). Mas há pior, há pior, mas em Marselha, não se esperava, enfim os SDF não são palestinos ………
Marselha é uma cidade portuária e a inteligência, nesta época natalícia, deve ter ido de férias num cruzeiro.
Saravá
IMPIO
Obrigada pela promessa, andorinha fugidia. Andas nos almoços de Natal...
Quando me referia a palestinos e dizia que os SDF não são palestinos, usava de ironia. De facto quando se fala de um palestiano pensa-se num homem-bomba a sonhar com 72 virgens no paraíso de Alá. Mas nem tudo que a Vox Dominus vende pode corresponder à verdade e daí que existam fenómenos que resultam em:
“Um israelita matou a tiro um palestiano que lançou pedras contra o seu automóvel, a norte de Jerusalém, na Cisjordânia, revelou à agência France Press uma fonte de segurança palestiniana.”. http://www.jn.pt/PaginaInicial/Mundo/Interior.aspx?content_id=4039720
Quando se perde o pensamento próprio em detrimento de um pensamento “colectivo” , cometer actos como estes é mais fácil. Dar tiros no elo mais fraco é fácil, difícil será dar tiros no elo mais forte, porque este reage na medida da sua própria força.
Saravá
IMPIO
Impio,
Para certas pessoas a inteligência vai de férias todo o ano:(
"Quando se perde o pensamento próprio em detrimento de um pensamento "colectivo", cometer actos como este é mais fácil"
Assino por baixo, Blasfemo:)
Bea,
Fugidia, eu?????
Os almoços chamam-se reuniões...:)
sorry, andorinha. escrevi por ter ouvido um professor queixar-se de tanto almoço e prendinha de natal:)
Que passem depressa as reuniões
:)))
Acabam amanhã ( BIG SMILE )
P.S. Não alinho muito em almoços ou jantares que se fazem porque têm que se fazer...:)
Ninguém Pode Exigir A Alguém Na Puberdade Que Tenha Noção Da Realidade E Façam Das Suas Descobertas Uma Doença Como A Acne
"http://www.tvi24.iol.pt/tecnologia/saude/sintomas-de-psicose-determinados-cientificamente-pela-primeira-vez"
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