sábado, dezembro 31, 2005

O prometido é devido! Sai do baú velharia solidária com a Sical:).

Despedida




Acordou cedo e definitivamente. Ofereceu-se preguiça longa na banheira, talvez os músculos empertigados cedessem ao calor da água... Derrota assumida, contribuiu para a saúde financeira da indústria farmacêutica engolindo um calmante. Desceu. Na cozinha, o rafeiro exibia cauda solidariamente de rastos, fez-lhe carícia grata. O céu de chumbo autorizou um desabafo esperançado - “merda de tempo!” -, mas o quisto cinzento do peito resistiu à lanceta do palavrão. Dobrou a dose de café e partiu ao meio a dieta, demolindo um naco de queijo da serra (por coerência gastronómica e triste avidez ensopado num cálice de Porto). A seguir, preparou-lhe o pequeno almoço com obsessivo requinte, enrugando a toalha para escapar ao seu “nada de últimas refeições perfeitas, ninguém vai morrer!”.
Literal e completamente não, mas cada despedida era um inferno. Quando o pai desaparecera, sem carta sinuosa, porrada velha ou aceno da mão ainda vestida de aliança, o pirralho ouvira, olhos secos, a explicação titubeante de mãe atarantada. E seca fora a resposta, de uma calma gélida para a sua pouca idade – “deixa, eu tomo conta de ti”. Fazendo-o se tornara homem. Mais precisamente – o seu homem. Outros, que lhe tinham debicado a vida ao longo dos anos, nunca saltavam da cama para o coração, aí reinava ele. Apesar de repetir a si própria o que as mães sabem e ignoram - “é teu filho, mas não te pertence, vai crescer...”.
Tanto que Portugal fora curto para o seu voo e aterrara em Londres. Boa escolha: grande cidade para ele, duas míseras horas de avião para ela. Quando o visitava era menos doloroso, recebida de braços abertos mas sabendo que ali não pertencia, na sala de embarque podia fazer batota - “volto para a minha terra”. Mas com ele de regresso à parvónia as coisas mudavam de figura, o metro e oitenta de rapaz a caminho dos trinta não sobrevivia ao contágio de fotografias espalhadas pela casa, era de novo o seu menino. E os meninos não abandonam as mães no avião das sete.
Ouviu o chuveiro. Afivelou o sorriso de ocasião, só o despiria depois de o deixar no aeroporto. Ele desceu, gentil mas parco em palavras; cauteloso, como se temesse dar-lhe pretexto para despedida lacrimejante. Ao almoço, petisco favorito, retribuiu com o “está muito bom” da praxe. Disse-lhe para ir visitar os amigos, o carro estava à disposição, arrumações a fazer e o tempo..., “uma merda!” (o palavrão voltou a não surtir efeito). Agradeceu, já se despedira da malta na noite anterior. A que ela se agarrou como uma náufraga, fazendo perguntas sobre tudo e todos, do restaurante in da saison aos mexericos da movida e a teóricas aventuras – “como te portaste?; olha que telefono à inglesinha!”. Ele sorrindo, mestre na esquiva, em pano de fundo o Mozart que ambos amavam. D.Giovanni... O patife e o seu humor arrevesado!
A dúvida em contagem decrescente – aguento-me até partir? O aeroporto. A hesitação entre o desejo de um atraso que lhe concedesse mais uns minutos e a imperiosa necessidade de o ver pelas costas para o chorar. O abraço descontraído que ele impunha. Conhecia-o tão bem!, ao seu menino, esquivo nesses momentos por também sentir um nó na garganta. “Pisga-te já, ouviste?” E ela dizia que sim, mas ficava no carro até o avião atascado na pista se transformar primeiro em pássaro elegante e depois num ponto; longínquo mas não final.
Rumo a casa, embalando o medo - “é bem mais perigoso andar de automóvel”. Conceder-lhe uma hora a mais para bagagem e trajecto. O telefonema falsamente desprendido, “chegaste bem? Óptimo. Vê se descansas”. Depois, o mail pecaminoso que jamais teria resposta – “foi bom, querido, amo-te muito”. Só então ficou só. Um silêncio de tortura por estrear. Saiu para a varanda. Os espanta-espíritos, espantados com o furacão assolando o seu, dançavam enlouquecidos sem ponta de brisa como alibi. Sentada, abriu os diques - nem uma lágrima. De tão violentadas ao longo do dia tinham amuado e partido com o dono, clandestinas entre as gotas do after-shave.
Na manhã seguinte, ele fez a barba como de costume; e como de costume orvalhou a face com o até aí anónimo after-shave. Para descobrir que a pele não lhe ardia, mas ronronava sob carícias de mulher. Que o acompanharam, religiosa e diariamente, até ao regresso definitivo a Portugal.